"O pequeno príncipe" e as metáforas bíblicas da morte

De todos os mundos por onde passou, a Terra é, sem dúvida, o planeta em que o pequeno príncipe mais deixou saudade. Desde 1943, quando o personagem criado pelo francês Saint-Exupéry foi apresentado a nós, terráqueos, mergulhamos, a cada releitura, em uma profunda e poética jornada de autoconhecimento. Os rastros luminosos do Petit nos conduzem a múltiplas viagens – da infância à vida adulta, da aparência à realidade, da vida à morte. Sim, embora esse legítimo e antigo best-seller seja difundido como uma metáfora da infância ou ainda um livro de misses, o personagem de Saint-Exupéry, dentre tantos itinerários, também experimenta – e nos auxilia a entender – a mais misteriosa, insondável e imperscrutável das viagens: a morte.

A formação católica do autor fica evidente nos símbolos bíblicos empregados ao longo da narrativa: o deserto, a areia, a raposa, a serpente, a rosa, o céu, as estrelas e tantos outros elementos que evocam a presença da sacralidade, da transcendência e da imortalidade da alma.

Ilustração para a primeira edição
 de O pequeno príncipe.
Além de escritor e aviador,
 Saint-Exupéry também era ilustrador.
Reminiscências do sagrado emergem já nas primeiras páginas: o deserto onde o aviador fica exilado é uma metáfora do isolamento, da solidão, da busca pelo autoconhecimento. É no deserto que os místicos buscavam atingir a plenitude, o contato com seres elevados e o equilíbrio com o Universo – a areia simboliza o infinito.

E é nas areias do deserto que misteriosamente surge o pequeno príncipe – também um eremita, um viajante, um sábio, um peregrino. Como grandes vultos da narrativa bíblica – Moisés, Josué e Jesus, por exemplo –, o menino de cabelos dourados propaga a sua doutrina no meio do deserto. Aliás, o pequeno príncipe guarda uma profunda semelhança com Jesus Cristo – vide suas parábolas, seu jeito sereno de ensinar, suas referências a outro mundo, seu diálogo com a serpente (no cristianismo, a personificação do Diabo) e sua constante alusão à morte e ao regresso ao seu lar. Além disso, o surgimento do principezinho está ligado profeticamente à aparição de uma estrela – símbolo do espírito e da luz espiritual –, como o nascimento do Messias. 

A última ceia, de Leonardo Da Vinci.
A rosa - um dos principais elementos de
O pequeno príncipe - simboliza o Santo Graal, o
cálice utilizado por Jesus na última
ceia, no qual, segundo algumas lendas,
posteriormente, também foi recolhido o seu sangue.
Essa noção de finitude da vida, de iminência da morte, mas da esperança de sobrevivência da alma fica clara o tempo inteiro – basta lembrarmo-nos dos seguintes trechos: “Eu parecerei estar morto” e “Quando olhares o céu de noite, eu estarei habitando uma estrela”. Da mesma forma, Jesus também consolava seus discípulos e prometia estar com eles até o fim dos tempos. Há ainda outra analogia à figura de Cristo e seus seguidores: o pequeno príncipe tem uma conversa diante de um poço – cujo desenrolar muito se parece com o diálogo de Jesus com a samaritana (João 4: 7-15).

Outros diálogos estão cheios de ecos das mais diversas narrativas bíblicas – apresentando, como nas Escrituras, os significados de alguns animais. Símbolo do sacrifício, o carneiro aparece já no início da história. O contato do Petit com a astuta raposa – que simboliza Herodes e o Mal – tem semelhanças com os textos do Cântico dos Cânticos. Além disso, a promessa de libertação feita pela serpente evoca o relato do terceiro capítulo do Gênesis: Eva, como o pequeno príncipe, acredita nas palavras do réptil maligno.

Tomado por essas ideias, o pequeno príncipe decide partir. Para isso, precisa deixar seu invólucro, seu corpo, sua concha vazia. Ele vai embora. Otimista e pleno, o principezinho parte. Parte em direção às estrelas, em direção aos nossos corações, em direção à eternidade.

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