“Clarisse”, a mais bela apologia à dor feita pelo rock nacional

Eu tinha 17 anos.  Utilizar horas e horas para pesquisar sobre meus ídolos – sempre gente incompreendida pela sua época – era comum. Naquela tarde, eu apreciava os manuscritos de Renato Russo. Até estava achando a caligrafia dele semelhante à minha. Todavia, a maior similaridade entre nós viria a seguir – a descoberta da canção Clarisse. Em algum lugar da página na internet, não me recordo exatamente onde, havia uma referência à música. Cliquei. As notas melancólicas começaram a soar. A saga da adolescente começava. Com ela, iniciava-se, também, uma relação de profunda identificação com a trajetória dolorosa da personagem que dá nome à canção. A partir daquele momento, Clarisse seria ouvida diariamente. Agora mesmo, escrevendo este texto, estou imerso no longo – e doloroso – itinerário dessa jovem que só tem 14 anos.

O Enforcado, no Tarô de Marselha,
serve para simbolizar Clarisse:
o sofrimento traz a capacidade
de enxergar por novos ângulos.
Talvez você não tenha percebido, mas é a primeira vez que escrevo aqui, neste blog, utilizando a primeira pessoa do singular. Embora os textos publicados anteriormente estejam sempre carregados de uma subjetividade lancinante, que sobrepuja qualquer outro discurso, o eu sempre esteve implícito. Clarisse o fez emergir dos lugares mais recônditos de minha alma. À medida que escrevo no Ópera da Madrugada, sinto uma proximidade cada vez maior – eu, o blog e meus poucos leitores formamos uma amálgama.Uma simbiose causada pela comunhão de ideias, pelo amor à arte e pela identificação com os temas tratados. Este texto sobre Clarisse  é um exemplo disso. Tenho certeza que aqueles que por aqui passarem seus olhos sentirão a mesma coisa que eu. 

Embora esteja cheia de ecos da vida do próprio autor – Renato teve crises de depressão e cortou os pulsos na adolescência, e a canção oscila entre dois pronomes pessoais: ora eu, ora ela –, a composição musical da Legião Urbana sintetiza as agruras daqueles que são incompreendidos pela sociedade retrógrada em que vivem. De fato, ao me entregar à Clarisse, já não sei mais se sou eu que “Estou cansado de ser vilipendiado, incompreendido e descartado” ou se é ela quem “Está trancada no seu quarto, com seus discos e seus livros, seu cansaço”.

De origem francesa, o nome “Clarisse” carrega o significado de “luminosidade”. Um paradoxo, sem dúvida. Na canção, a jovem está imersa em sombras, em pranto, em dor. Intencionalmente Renato Russo apresenta alguém que é visto pelo mundo como radiante, mas vive ferido exatamente pela incompreensão das pessoas que o rodeiam. Esses estigmas são tão notórios que emergem da alma e se materializam na carne – “Faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete/Deitada num canto, seus tornozelos sangram”.

Capa de Uma Outra Estação, disco lançado
após a morte de Renato Russo.
A canção Clarisse, composta há muito
 tempo, ficou fora dos álbuns anteriores
 da banda porque a Legião Urbana
temia por uma onda de suicídios. 
Desiludida de tudo, mesmo tendo somente 14 anos, Clarisse encontra seus poucos momentos de anestesia na arte – em seus livros e seus discos. Fora do quarto ou do banheiro onde ela aparentemente se mutila – as feridas reais são causadas pelo mundo e são invisíveis aos olhos da sociedade hipócrita e primitiva –, o perigo é constante: “O medo de voltar pra casa à noite, dos homens que se esfregam nojentos no caminho de ida e volta da escola”. 

A morte iminente de Clarisse é o principal risco dentre todos esses perigos. Da ampulheta – “que não se move, não se mexe, não trabalha” – à alusão “vou voar pelo caminho mais bonito”, tem-se uma profunda simbologia: o arcaico relógio de areia é sempre ligado ao passar do tempo e ao findar de ciclos; o pássaro preso na gaiola é uma metáfora do imaterial, do transcendente, da alma que deseja abandonar o corpo físico. Contudo, a garota é ignorada. Seus dilemas existenciais são tratados como meros problemas psicológicos. A ajuda não vem espontaneamente. As pessoas se portam como o bom samaritano, mas no fundo não sabem e não entendem a profundidade e a abrangência dos “problemas” de Clarisse: “Quem diz que me entende nunca quis saber”.

Eu quero saber. Eu me importo. Entendo, pelo menos um pouco, quem é Clarisse. Clarisse é a alegoria da genialidade precoce. É a personificação daqueles que sofrem pelo mundo doente, onde “a verdade é o avesso”. Clarisse é a própria biografia de Renato Russo. É o hino daqueles que se debruçam em questões complexas, metafísicas, espirituais – que a maioria não consegue enxergar. Clarisse é um símbolo da inconformidade do homem diante da superficialidade da vida. Clarisse é a misantropia. É o grito de dor. Clarisse é cada um que é ferido diariamente pelas injustiças da vida. Clarisse é a loucura. É a dor. É a solidão. Clarisse sou eu.




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