Eternos crimes, eternos castigos, eternos sucessos: um olhar para a obra imperecível (e genial) de Dostoiévski


Na vitrola, a canção Clair de Lune, de Debussy, era a sua única companhia. Os dedos, já acostumados, moviam-se num ritmo frenético. Na antiga máquina Remington, ela escrevia, dia após dia, uma história mais fantástica que a outra. Quando era questionada sobre a origem de sua inspiração primorosa, Janete Clair – a maior novelista de todos os tempos - respondia enfaticamente: da obra de Dostoiévski.

Algumas décadas depois, num confortável escritório localizado no Rio de Janeiro, um homem escreve tão compulsivamente quanto Janete - já não mais na antiga Remington - o próximo capítulo da história que vai ao ar logo mais à noite. Desde a sua estreia, ele conheceu a fama no seu significado mais completo. Em entrevistas, João Emanuel Carneiro, autor de novelas extraordinárias, revela o grande segredo do sucesso: também é um profundo admirador da obra de Fiodor Mikhailovich Dostoiévski.



Capa de uma antiga edição do livro O Duplo, de Dostoiévski. 
A obra - que narra a história de homens parecidos - serviu de inspiração para numerosas telenovelas, 
dentre elas: A Usurpadora, de Inês Rodena; O Outro, de Aguinaldo Silva, 
e Da Cor do Pecado, de João Emanuel Carneiro.
A imortalidade do escritor russo está na sua composição literária, mundialmente reconhecida, que mescla Psicologia, História e estudos sobre o cristianismo. Aliás, Dostoiévski recebeu uma criação cristã - que o levou a perscrutar a moral e a conduta humana. Influenciado por autores renomados de folhetins, como Balzac e Dieckens, e até pela literatura de cordel,  o romancista, nascido em Moscou, arquitetou tramas complexas que exploram o crime como instrumento de vingança e proteção.

Seus personagens travam verdadeiros conflitos interiores. Verdadeiros diálogos com a própria consciência. São marcados por profundos distúrbios mentais, mas, ao mesmo tempo, são profundamente humanos. Gestos, palavras e sentimentos são as pistas que recebemos do autor para desvendarmos suas tramas. Evidentemente, a psicologia está impregnada nesses elementos, pois apenas alguém com o conhecimento da mente humana poderia se utilizar desses recursos subliminares para planejar histórias desse tipo.

Ler Crime e Castigo, publicado em 1866, é como imergir num pesadelo. Ou contemplar a mente de um criminoso que tem medo, mas se justifica pela atrocidade que cometeu. As condições humanas e a miséria, também são temas recorrentes na obra de Dostoiévski. No ponto de vista literário, é impossível limitá-lo a um único gênero. Crime e Castigo vai de um requintado romance policial a uma obra complexa de psicanálise - digna de Freud.  

É possível encontrarmos os personagens complexos e os enredos intrincados criados por Dostoiévski transmutados em telenovelas, peças teatrais, filmes e seriados de serial-killers. Aliás, parece que toda a produção cultural a partir do século XX bebe em Dostoiévski. Paixão e fúria, amor e ódio, crime e arrependimento são elementos fundamentais que saltam das páginas de seus escritos.

Sua influência sobre toda a literatura universal é avassaladora. Sem Dostoiévski, não seriam possíveis pesquisas em profundidade de psicólogos como Nietzsche e Freud. O criador de Raskólnikof arrasta, arrebata e seduz de forma perturbadora. Como afirmou Stefan Zweig no prefácio de uma antiga edição de Crime e Castigo: “As relações entre Dostoiévski e os seus leitores não são tão afetuosas nem agradáveis; é um conflito de instinto perigoso, cruel, voluptuoso. Nossa curiosidade, nosso interesse não lhe bastam; quer a nossa alma e o nosso corpo.”

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