As muitas pessoas do poeta Fernando: a incrível arte de criar heterônimos

Costa Pinheiro,
  Fernando Pessoa - Heterônimo, 1978, óleo sobre tela.
Pessoa se desdobrava em várias personalidades -
como a projeção de sua sombra na imagem acima.
Fernando Pessoa – considerado pela grande crítica como o maior poeta luso depois de Camões – tinha como característica predominante a criação de heterônimos. Um  heterônimo não é um pseudônimo; é alguém que existe além de nós. Um ser que tem vida própria, que tem ideologia e estilo próprios. Um heterônimo não é apenas um nome fictício utilizado para assinar publicações. É uma vida além da sua. Aliás, o vocábulo heterônimo passou a ser largamente utilizado depois de 1914 – quando Pessoa criou seus primeiros personagens.

Segundo alguns estudiosos, Pessoa possuía mais de setenta heterônimos. Porém, os mais conhecidos são Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Alberto Caeiro é rude, simples e humilde. Álvaro de Campos é sensacionalista, entusiástico e moderno. Ricardo Reis é clássico, conciso e abstrato. Já Pessoa “ele mesmo” é lírico, melancólico, angustiado e transcendente.

O Mago no Tarô de Marselha.
Assim como o mago,
Fernando Pessoa,
ao criar heterônimos,
 explora o poder da transmutação. 

Abaixo, pintura de Almada Negreiros representando o poeta. 
É notável a semelhança entre ambas as imagens. 

Embora cada uma dessas figuras esteja inserida num contexto diferente, em 1999, Samir Yazbeck – escritor paulista e diretor de teatro – reuniu os três heterônimos numa mesma obra. O fingidor – peça teatral vencedora do Prêmio Shell, a maior premiação do gênero no Brasil – retrata o próprio Fernando Pessoa disfarçado de datilógrafo, para trabalhar ao lado de um crítico literário que escreve sobre a obra do próprio poeta português. Ao longo da peça, os três heterônimos mais conhecidos do grande público vão surgindo de forma espetacular.

Ainda que não sejam vistos como casos de heteronímia, o desdobramento de um ser em vários outros - sejam eles deuses ou homens - é comum nas várias ramificações do conhecimento humano. Há quem diga que Leonardo Da Vinci envelheceu precocemente por viver muitas vidas ao mesmo tempo – era engenheiro, inventor, pintor, estudioso da anatomia humana... Até mesmo as divindades possuem muitas faces, ainda que sejam tidas como únicas. Por exemplo, os cristãos evocam a trindade – um mistério da fé, como garante o catecismo. Não são três deuses. É apenas um. Mas tem três faces. São três pessoas distintas. Os romanos também cultuavam Janus, o deus das portas, dos inícios, o deus de duas faces. Os egípcios cultuavam a trindade sagrada: Ísis, Hórus e Osíris. É evidente que essa capacidade divina de se transmutar em várias faces influenciou Pessoa.


Fernando Pessoa era apaixonado 
por astrologia e ocultismo. 
Por conta desse fascínio, Pessoa teria mantido
 amizade com Aleister Crowley 
- grande ocultista inglês do século 20. 
Acima, mapa astral de Ricardo Reis, 
um de seus heterônimos, feito pelo próprio poeta.



 Os motivos que levaram Fernando Pessoa a esse projeto de arte tão grandioso, místico e ousado têm sido objeto de estudo há anos e provavelmente ainda serão por muitos anos. Só há uma certeza: a pluralidade é característica dos imortais. E isso Fernando Pessoa sabia muito bem.


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