A literatura em metamorfose: reflexões sobre alienação na obra de Kafka

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” Gregor Samsa é um jovem caixeiro-viajante; e a obra iniciada por essa macabra declaração é A metamorfose, de Franz Kafka – escritor tcheco que recorreu à literatura para mostrar a condição do homem da sua época.

Charles Chaplin em cena do clássico Tempos Modernos.
Carlito desliza entre as engrenagens
- uma crítica à Revolução Industrial,
que encarava o operário como apenas mais
uma peça do sistema de produção.
O contexto histórico em que o livro foi escrito – marcado pela ebulição da Revolução Industrial – é visto como cenário de grandes transformações. O advento das máquinas trouxe agilidade à produção, mas o trabalhador passou a não dominar mais todo o processo de fabricação. A função do operário fui reduzida a ser simplesmente mais uma peça da engrenagem.

Prometeu, de Rubens. Acorrentado e tendo o seu fígado
devorado para sempre, o personagem é
 símbolo de uma situação triste e repetitiva.
Apesar de não ser um operário, Samsa levava uma vida monótona, repetitiva, alienada. Sentia-se um inseto. Aliás, todos os protagonistas de Kafka compartilham esses sentimentos. E não apenas os personagens de Kafka. O vocábulo alienação nunca foi tão usado – e vivenciado – como agora.

Imaginemos Gregor Samsa imerso na nossa sociedade. Talvez ele disesse que a televisão é o grande veículo de alienação. Afinal, é isso que a maioria diz. Ou talvez não. A segunda hipótese é a mais provável. Para Kafka, estar alienado é estar inserido num contexto de exaustão, de repetição e de falta de consciência. Feuerbach, renomado filósofo alemão, afirmava que ser alienado é criar algo e não se reconhecer como criador. É viver submisso a sua própria criação. É inverter os papéis.

O Tonel das Danaides, de John William Waterhouse (1903).
O tema do trabalho árduo, sem descanso
 ou libertação, é recorrente, também, na mitologia grega.
A visão de Kafka é muito semelhante. O homem oriundo da sociedade industrial não percebe o quão condicionado ele está. Ele apenas produz, produz e produz. Não possui autonomia. Não reconhece seu lugar no mundo. Para Kafka, existe a necessidade de um “despertar”. É exatamente esse despertar que alcançamos quando lemos sua obra. Ao ler Kafka, também sofremos uma profunda metamorfose.  Mas não nos tornamos insetos. Somos transmutados. Evoluímos. Saímos do comodismo imposto pela sociedade. Contemplamos um novo mundo - como o imago que, depois da metamorfose, abandona a sua velha casa, o casulo, para alçar vôos mais distantes.


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