A presença da Morte nas histórias infantis de Hans Christian Andersen
Andersen, escritor dinamarquês. Fotografia de Thora Hallager (1867). |
Uma sereia que se transforma em espuma
do mar. Uma garotinha pobre que é levada aos céus pela avó já falecida. Um
soldado e uma bailarina que são consumidos pelo fogo, mas ficam juntos para
sempre. Foram muitas as metáforas – e histórias – utilizadas pelo escritor
dinamarquês Hans Christian Andersen, um dos maiores autores de literatura
infantil, para lidar com um tema tão nevrálgico e real: a morte.
Suas histórias – velhas conhecidas de
todos nós – carregam, de forma triste, mas poética, a ideia do sofrimento, da
tristeza e do final nem sempre feliz. Talvez esse viés melancólico – transposto
para a literatura – tem referências autobiográficas: Andersen passou por
diversos problemas durante a vida. Estudiosos defendem que O Patinho Feio – um dos contos mais conhecidos do autor – é um
retrato de sua infância. Andersen fugia dos padrões de beleza da época – o que
certamente o levou a escrever sobre autoestima.
Embora tenham sido revisitadas – e
adaptadas –, as histórias originais de Andersen apresentam dilemas reais e
profundamente humanos. São muito mais que fábulas ou apólogos. Os desfechos das
narrativas desse autor transcendem o final feliz. Os personagens lidam com a
ideia da morte constantemente.
Ariel, protagonista de A Pequena Sereia, conhece a face mórbida
do amor. Além de se apaixonar por um humano, Ariel recorre às forças ocultas do
destino – personificadas pela Bruxa do Mar. Em troca de pernas – para ir ao
encontro do príncipe –, a jovem sereia entrega sua voz. Numa versão mais antiga
– e ainda mais assustadora –, Ariel, após consultar a Bruxa, toma uma lâmina e
rasga a própria cauda, transformando-a em pernas. Ao ser desprezada pelo
príncipe – que está de casamento marcado –, a sereiazinha, profundamente
magoada, atira-se ao mar e é transformada em espuma (ou em uma fada área). Seja
qual for a versão, a morte – de forma metafórica – é evocada.
Em O
Soldadinho de Chumbo e a Bailarina, os dois personagens vivem um amor
tranquilo. Até o dia em que o soldadinho é atirado pela janela. Esse fenômeno
desencadeia toda a ação da narrativa e culmina com a queda do soldado e da
bailarina de papel – que é uma figura completamente etérea – no fogo.
Eros e Psiquê, de Bouguereau. Assim como o soldado de chumbo e a bailarina de papel, esses amantes representam a simbiose perfeita entre corpo e alma. |
Em O
Rouxinol e o Imperador da China, a morte aparece, mas o desfecho não é
mórbido. A morte é utilizada sob uma perspectiva de análise, de exame, de
julgamento. Após expulsar o rouxinol, aquele que foi seu amigo, em troca de um
pássaro mecânico, o imperador adoece. E a Morte surge para assombrá-lo,
tirando-lhe a espada, a coroa – símbolos de sua majestade e poder – e, por fim,
quer roubar-lhe a vida. É quando surge o rouxinol, frágil e pequeno, mas capaz de
afastar a Morte, com o seu canto. Para escrever essa história, Andersen se
inspirou no relato verídico de uma jovem doente que, após ouvir uma cantora
talentosa, apresentou melhoras consideráveis.
A profundidade dos escritos de Andersen
– apesar das histórias curtas e infantis – permitiu estudos psicanalíticos. Nos anos 70, o renomado psicólogo infantil Bruno Bettelheim desenvolveu
estudos voltados ao caráter mórbido – mas tão relevante – da produção literária
de Andersen. Segundo Bettelheim, as narrativas do escritor dinamarquês – pela
ausência do final feliz – poderiam ser classificadas como mitos.
Andersen construiu histórias belas e
trágicas – que não oferecem o consolo de um desfecho feliz, mas evocam a
fragilidade da vida, a beleza dos sentimentos bons e, sobretudo, apresentam, de
forma poética, o temor que arrebata os homens de todas as épocas: o mistério
da morte.
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