A presença da Morte nas histórias infantis de Hans Christian Andersen

Andersen, escritor dinamarquês.
Fotografia de Thora Hallager (1867).
Uma sereia que se transforma em espuma do mar. Uma garotinha pobre que é levada aos céus pela avó já falecida. Um soldado e uma bailarina que são consumidos pelo fogo, mas ficam juntos para sempre. Foram muitas as metáforas – e histórias – utilizadas pelo escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, um dos maiores autores de literatura infantil, para lidar com um tema tão nevrálgico e real: a morte.

Sereia, de Waterhouse (1901).
Desde tempos imemoriais, a imagem
 desse ser mitológico está relacionada à morte:
através do seu canto sedutor e do lugar
sombrio em que habita - as profundezas do oceano.  
Suas histórias – velhas conhecidas de todos nós – carregam, de forma triste, mas poética, a ideia do sofrimento, da tristeza e do final nem sempre feliz. Talvez esse viés melancólico – transposto para a literatura – tem referências autobiográficas: Andersen passou por diversos problemas durante a vida. Estudiosos defendem que O Patinho Feio – um dos contos mais conhecidos do autor – é um retrato de sua infância. Andersen fugia dos padrões de beleza da época – o que certamente o levou a escrever sobre autoestima.

Embora tenham sido revisitadas – e adaptadas –, as histórias originais de Andersen apresentam dilemas reais e profundamente humanos. São muito mais que fábulas ou apólogos. Os desfechos das narrativas desse autor transcendem o final feliz. Os personagens lidam com a ideia da morte constantemente.

Ariel, protagonista de A Pequena Sereia, conhece a face mórbida do amor. Além de se apaixonar por um humano, Ariel recorre às forças ocultas do destino – personificadas pela Bruxa do Mar. Em troca de pernas – para ir ao encontro do príncipe –, a jovem sereia entrega sua voz. Numa versão mais antiga – e ainda mais assustadora –, Ariel, após consultar a Bruxa, toma uma lâmina e rasga a própria cauda, transformando-a em pernas. Ao ser desprezada pelo príncipe – que está de casamento marcado –, a sereiazinha, profundamente magoada, atira-se ao mar e é transformada em espuma (ou em uma fada área). Seja qual for a versão, a morte – de forma metafórica – é evocada.

Em O Soldadinho de Chumbo e a Bailarina, os dois personagens vivem um amor tranquilo. Até o dia em que o soldadinho é atirado pela janela. Esse fenômeno desencadeia toda a ação da narrativa e culmina com a queda do soldado e da bailarina de papel – que é uma figura completamente etérea – no fogo. 

Eros e Psiquê, de Bouguereau.
Assim como o soldado de chumbo e a
bailarina de papel, esses amantes
 representam a simbiose
 perfeita entre corpo e alma.
A Pequena Vendedora de Fósforos é outra história que, apesar de curta, explora – com profundidade – temáticas como o abandono, a pobreza e a miséria humana. Numa noite de Natal – festa marcada pela extravagância e consumismo –, uma garotinha pobre caminha pelas ruas. Com fósforos nas mãos, ela receia voltar para casa e apanhar do pai, pois não vendeu nenhum fósforo. Trêmula, a garotinha, fugindo do frio, encolhe-se num canto. Contempla as belezas da noite de Natal. Risca fósforos, tem ilusões e vê a avó – já falecida –, que a leva para voar. E as duas sobem para onde não há frio, nem fome, nem miséria - voam para junto de Deus. Mais uma vez, a morte aparece no desfecho de uma história de Andersen.

Em O Rouxinol e o Imperador da China, a morte aparece, mas o desfecho não é mórbido. A morte é utilizada sob uma perspectiva de análise, de exame, de julgamento. Após expulsar o rouxinol, aquele que foi seu amigo, em troca de um pássaro mecânico, o imperador adoece. E a Morte surge para assombrá-lo, tirando-lhe a espada, a coroa – símbolos de sua majestade e poder – e, por fim, quer roubar-lhe a vida. É quando surge o rouxinol, frágil e pequeno, mas capaz de afastar a Morte, com o seu canto. Para escrever essa história, Andersen se inspirou no relato verídico de uma jovem doente que, após ouvir uma cantora talentosa, apresentou melhoras consideráveis.

A profundidade dos escritos de Andersen – apesar das histórias curtas e infantis – permitiu estudos psicanalíticos. Nos anos 70, o renomado psicólogo infantil Bruno Bettelheim desenvolveu estudos voltados ao caráter mórbido – mas tão relevante – da produção literária de Andersen. Segundo Bettelheim, as narrativas do escritor dinamarquês – pela ausência do final feliz – poderiam ser classificadas como mitos.

Andersen construiu histórias belas e trágicas – que não oferecem o consolo de um desfecho feliz, mas evocam a fragilidade da vida, a beleza dos sentimentos bons e, sobretudo, apresentam, de forma poética, o temor que arrebata os homens de todas as épocas: o mistério da morte. 

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