Tramas funestas, malditas e eternas: a presença do Diabo na literatura universal
“A
tua soberba foi lançada também no Sheol, na sepultura, junto com o som de
glória das tuas harpas.”
- Isaías 14:11
A
belíssima voz regia todo o coro à sua frente. Era a mais perfeita entre os sons
que inundavam aquele lugar. A sinfonia entoava – como sempre – um cântico
melodioso de júbilo ao criador daquele ambiente celestial. Era mais um dia na
eternidade. Mas há algum tempo, o regente daquele concerto – Lúcifer – andava
triste. Ao mirar-se nas águas plácidas de um lago, contemplou suas asas brilhantes,
a túnica suntuosa que cobria o seu corpo de arcanjo, o halo luminoso que
emanava de sua cabeça, admirou seu rosto eternamente jovial – era o retrato da
perfeição. Ainda assim, todas as luzes daquele local – radiantes e inigualáveis
– convergiam para o mesmo lugar. Ali, sóis e estrelas circulavam perfeitamente
ao redor do trono da Divindade. O belo
arcanjo começou a se perguntar: "E se eu fosse adorado e assumisse o trono divino?"
A
reflexão foi levada aos demais habitantes do Céu – os anjos. Um terço dessas
criaturas concordou com os ideais do companheiro. Ao saber das ideias que
estavam sendo propagadas em Seus domínios, o Criador – Yahweh Deus – convocou os
súditos para uma conversa. Seguiram-se outras. E outras. Aqueles anjos estavam
decididos: o Criador era um tirano egoísta. Eles também mereciam adoração. Sem
alternativas, Yahweh, com o auxílio das tropas do arcanjo Gabriel, expulsou-os
do Seu reino. Ao cair em direção ao abismo, Lúcifer se transformou. Já não era
mais um ser de luz. Suas asas se tornaram negras. Ele se tornou a própria
escuridão. Não havia mais razões para ser chamado de Lúcifer – que significa “o
portador da luz”. Sua aparência grotesca evocava outro nome – Satã ou Satanás.
A
história narrada acima descreve – para judeus e cristãos – o momento em que o
Mal surgiu no universo. Além de uma narrativa empolgante e poética, que
permitiu o surgimento de vários dogmas da fé – e temas de estudos para a
teologia –, o surgimento do Mal, de Satã e de seu reino permitiu o desenvolvimento
de outro campo do saber humano – a literatura.
Se
observarmos atentamente, veremos que grande parte da literatura universal – de
todos os tempos – obedece à prosaica dicotomia Bem X Mal. É esse embate entre
vilão e mocinho, luz e sombras, vida e morte, que faz uma trama, na maioria das
vezes, desenrolar-se. O movimento Barroco, por exemplo, está construído nesse
contexto. Nos sermões do padre Antônio Vieira, ou nos poemas de Gregório de
Matos, não há uma referência direta ao Diabo, mas o embate entre o desejo da
salvação e a sedução do pecado é constante.
No
Romantismo, sobretudo na segunda geração, há uma recorrência ainda maior à
figura do Diabo. Os intelectuais embriagados nas tavernas, e envolvidos pelas
temáticas mórbidas, num clima febril e sobrenatural, narram histórias macabras
sobre encontros com Satã. Um desses autores românticos, Álvares de Azevedo,
inclusive, escreveu uma obra chamada Macário,
que narra a história de um jovem que conhece Satã, e os dois passam horas
conversando sobre amor impossível, trágico e doentio.
Gil
Vicente, escritor português, também concebeu uma obra que explora a relação do
confronto do homem com a personificação do Mal. Em O Auto da Barca do Inferno, não apenas o Diabo, mas outros elementos
personificados ganham vida e interagem ao longo da história.
No
Brasil, tem-se uma equivalência dessa obra: O
Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Ao decorrer da trama, o Diabo
surge num momento bem clássico – após a morte dos personagens principais. É o
Diabo quem traz à tona as lembranças e as situações mais nevrálgicas vividas
por cada um. Mas ele não julga com sabedoria. É mentiroso. Quer condenar a
todos. Assume disfarces.
Outro
brasileiro que escreveu de forma bastante atual suas aventuras ao lado de Satã foi Rubem Alves. No conto Eu e Bebu,
o autor narra a história de um rapaz que passa um dia inteiro ao lado do
Demônio. Nota-se grande cumplicidade entre os dois personagens. Bebem, descem o
elevador, saem juntos, conversam. E ao final da história – inacreditavelmente –,
o Diabo diz, ao seu companheiro, que vai à missa.
Na
rústica literatura de cordel, concebida principalmente no Nordeste brasileiro,
tem-se diversas referências ao Diabo. Renomados escritores e folcloristas –
como Ricardo Azevedo e Luís da Câmara Cascudo – recolheram narrativas populares
que apresentam encontros do homem com o Demônio. Na maior parte dessas
histórias, cujos cenários e personagens são sempre parecidos, o Diabo lança
enigmas, faz promessas e oferece riqueza aos sertanejos.
A Divina Comédia,
clássico monumental da literatura italiana, é uma das obras que mais exploram a
vida após a morte – e, consequentemente, a presença do Diabo. Dante Alighieri –
o autor da obra – teceu uma imaginária visita ao Além. Através de seu
itinerário – cheio de descrições fantásticas –, conhecemos os nove círculos do
inferno. E as paisagens tenebrosas cheias de demônios sádicos. Influenciado
pela iconografia cristã, Dante reproduz a imagem de Satã como um ser
horripilante e maléfico.
Em
Fausto, de Goethe, tem-se a história
de um jovem que se volta para a religião – por influencia da família –, mas
estuda magia negra. Tem sede pelo poder, pela juventude e pelo conhecimento.
Disposto a tudo para realizar seus objetivos, Fausto faz um pacto com Mefistófeles
– o demônio da história. Torna-se, então, jovem, rico e poderoso. Mas alguns
anos depois, o Diabo vem cobrar a dívida. Quer a alma do rapaz. Fausto tenta
fugir. Mas não pode escapar do destino que fora traçado por ele mesmo.
Santo Agostinho e o Diabo, de Michal Pacher. Satã é um figura recorrente - também - na pintura. |
Tema
de debates teológicos ou literários, o Diabo emerge como uma alegoria. Uma
figura idealizada pelos homens. Em Satã, estão exilados todos os nossos erros,
os nossos desejos secretos, as nossas misérias. Nos livros, ele aparece de
diversas formas. Ora como um opositor, dificultando o trajeto do herói. Ora
como um ser capaz de conceder o que se deseja. E, ainda, como um amigo (como no
conto de Rubem Alves). O Diabo, porém, em qualquer circunstância, é sempre um
símbolo do desconhecido, do antigo, do profano. O Diabo é a parte rebelde,
transgressora e misteriosa que todos nós possuímos – e adoramos.
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