Tramas funestas, malditas e eternas: a presença do Diabo na literatura universal

“A tua soberba foi lançada também no Sheol, na sepultura, junto com o som de glória das tuas harpas.”
- Isaías 14:11
A belíssima voz regia todo o coro à sua frente. Era a mais perfeita entre os sons que inundavam aquele lugar. A sinfonia entoava – como sempre – um cântico melodioso de júbilo ao criador daquele ambiente celestial. Era mais um dia na eternidade. Mas há algum tempo, o regente daquele concerto – Lúcifer – andava triste. Ao mirar-se nas águas plácidas de um lago, contemplou suas asas brilhantes, a túnica suntuosa que cobria o seu corpo de arcanjo, o halo luminoso que emanava de sua cabeça, admirou seu rosto eternamente jovial – era o retrato da perfeição. Ainda assim, todas as luzes daquele local – radiantes e inigualáveis – convergiam para o mesmo lugar. Ali, sóis e estrelas circulavam perfeitamente ao redor do trono da Divindade.  O belo arcanjo começou a se perguntar: "E se eu fosse adorado e assumisse o trono divino?"

Primeiro volume da
série Fallen (2009), de Lauren Kate.
 Luce se apaixona por Daniel Grigori,
 um anjo caído. Mas o romance dos dois
 é conturbado pela presença de Cam,
um belo demônio. A presença do Diabo
 na literatura é recorrente até os dias de hoje.
A reflexão foi levada aos demais habitantes do Céu – os anjos. Um terço dessas criaturas concordou com os ideais do companheiro. Ao saber das ideias que estavam sendo propagadas em Seus domínios, o Criador – Yahweh Deus – convocou os súditos para uma conversa. Seguiram-se outras. E outras. Aqueles anjos estavam decididos: o Criador era um tirano egoísta. Eles também mereciam adoração. Sem alternativas, Yahweh, com o auxílio das tropas do arcanjo Gabriel, expulsou-os do Seu reino. Ao cair em direção ao abismo, Lúcifer se transformou. Já não era mais um ser de luz. Suas asas se tornaram negras. Ele se tornou a própria escuridão. Não havia mais razões para ser chamado de Lúcifer – que significa “o portador da luz”. Sua aparência grotesca evocava outro nome – Satã ou Satanás.

A história narrada acima descreve – para judeus e cristãos – o momento em que o Mal surgiu no universo. Além de uma narrativa empolgante e poética, que permitiu o surgimento de vários dogmas da fé – e temas de estudos para a teologia –, o surgimento do Mal, de Satã e de seu reino permitiu o desenvolvimento de outro campo do saber humano – a literatura.

Se observarmos atentamente, veremos que grande parte da literatura universal – de todos os tempos – obedece à prosaica dicotomia Bem X Mal. É esse embate entre vilão e mocinho, luz e sombras, vida e morte, que faz uma trama, na maioria das vezes, desenrolar-se. O movimento Barroco, por exemplo, está construído nesse contexto. Nos sermões do padre Antônio Vieira, ou nos poemas de Gregório de Matos, não há uma referência direta ao Diabo, mas o embate entre o desejo da salvação e a sedução do pecado é constante.
No Romantismo, sobretudo na segunda geração, há uma recorrência ainda maior à figura do Diabo. Os intelectuais embriagados nas tavernas, e envolvidos pelas temáticas mórbidas, num clima febril e sobrenatural, narram histórias macabras sobre encontros com Satã. Um desses autores românticos, Álvares de Azevedo, inclusive, escreveu uma obra chamada Macário, que narra a história de um jovem que conhece Satã, e os dois passam horas conversando sobre amor impossível, trágico e doentio.

Gil Vicente, escritor português, também concebeu uma obra que explora a relação do confronto do homem com a personificação do Mal. Em O Auto da Barca do Inferno, não apenas o Diabo, mas outros elementos personificados ganham vida e interagem ao longo da história.

No Brasil, tem-se uma equivalência dessa obra: O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Ao decorrer da trama, o Diabo surge num momento bem clássico – após a morte dos personagens principais. É o Diabo quem traz à tona as lembranças e as situações mais nevrálgicas vividas por cada um. Mas ele não julga com sabedoria. É mentiroso. Quer condenar a todos. Assume disfarces.

Outro brasileiro que escreveu de forma bastante atual suas aventuras ao lado de Satã foi Rubem Alves. No conto Eu e Bebu, o autor narra a história de um rapaz que passa um dia inteiro ao lado do Demônio. Nota-se grande cumplicidade entre os dois personagens. Bebem, descem o elevador, saem juntos, conversam. E ao final da história – inacreditavelmente –, o Diabo diz, ao seu companheiro, que vai à missa.

Na rústica literatura de cordel, concebida principalmente no Nordeste brasileiro, tem-se diversas referências ao Diabo. Renomados escritores e folcloristas – como Ricardo Azevedo e Luís da Câmara Cascudo – recolheram narrativas populares que apresentam encontros do homem com o Demônio. Na maior parte dessas histórias, cujos cenários e personagens são sempre parecidos, o Diabo lança enigmas, faz promessas e oferece riqueza aos sertanejos.

Asmodeu (Stênio Garcia). Inspirada em diversos
 contos populares brasileiros, a minissérie
Hoje é dia de Maria apresentou o
Diabo - que assumia diversas faces - como uma
 figura fundamental para o desenvolvimento da história.
A Divina Comédia, clássico monumental da literatura italiana, é uma das obras que mais exploram a vida após a morte – e, consequentemente, a presença do Diabo. Dante Alighieri – o autor da obra – teceu uma imaginária visita ao Além. Através de seu itinerário – cheio de descrições fantásticas –, conhecemos os nove círculos do inferno. E as paisagens tenebrosas cheias de demônios sádicos. Influenciado pela iconografia cristã, Dante reproduz a imagem de Satã como um ser horripilante e maléfico.

Em Fausto, de Goethe, tem-se a história de um jovem que se volta para a religião – por influencia da família –, mas estuda magia negra. Tem sede pelo poder, pela juventude e pelo conhecimento. Disposto a tudo para realizar seus objetivos, Fausto faz um pacto com Mefistófeles – o demônio da história. Torna-se, então, jovem, rico e poderoso. Mas alguns anos depois, o Diabo vem cobrar a dívida. Quer a alma do rapaz. Fausto tenta fugir. Mas não pode escapar do destino que fora traçado por ele mesmo.

Santo Agostinho e o Diabo, de Michal Pacher.
Satã é um figura recorrente - também -  na pintura.
Tema de debates teológicos ou literários, o Diabo emerge como uma alegoria. Uma figura idealizada pelos homens. Em Satã, estão exilados todos os nossos erros, os nossos desejos secretos, as nossas misérias. Nos livros, ele aparece de diversas formas. Ora como um opositor, dificultando o trajeto do herói. Ora como um ser capaz de conceder o que se deseja. E, ainda, como um amigo (como no conto de Rubem Alves). O Diabo, porém, em qualquer circunstância, é sempre um símbolo do desconhecido, do antigo, do profano. O Diabo é a parte rebelde, transgressora e misteriosa que todos nós possuímos – e adoramos. 



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