"Tempo Perdido", uma canção atemporal


Já é um lugar-comum dizer que as letras das canções da Legião Urbana são atemporais. Mas, de fato, não há outra definição para as músicas da banda. Além da atemporalidade, o grupo, por meio do empenho de Renato Russo, conseguiu, de forma panorâmica, explorar temas das mais diversas ramificações da arte, do conhecimento, da filosofia e da cultura. Das exortações de Paulo à igreja de Corinto, que constituem importantes textos do cristianismo, aos belos versos de Os Lusíadas, do poeta português Camões, uma epopeia da história portuguesa, Renato Russo e seus parceiros teceram abordagens interdisciplinares, abrangentes – tanto é que de suas músicas foram extraídos enredos que renderam horas ao cinema, como Faroeste Caboclo (2013) e Somos Tão Jovens (2013) – e culturalmente imersas. Vale, porém, destacar, dentre tantas reflexões poéticas e inteligentes, uma composição que apresenta um tema complexo e fascinante – a relação do homem com o tempo. Inserida no Dois, o segundo álbum da Legião Urbana, a canção Tempo Perdido – curta e com uma letra aparentemente simples – consegue ser tão profunda e perene quanto qualquer composição mais longa.

Renato Russo/Reprodução.
           Questões filosóficas e existenciais
                são comuns em suas canções.
Tempo Perdido sonda, de forma paradoxal e contrastante ("Não temos tempo a perder/Temos todo o tempo do mundo"), o itinerário do homem na Terra, seus conflitos, suas angústias, suas atitudes, seu passado, seu presente, seu futuro... Enfim, faz pensar sobre a história e sobre a utilização do tempo – que sempre permaneceu como um dos mais profundos mistérios para o ser humano.

Os antigos gregos, por exemplo, viam o tempo de forma personificada – o deus Cronos, misterioso e cruel. Os romanos atribuíam essas mesmas características a uma divindade equivalente, Saturno. Os faraós pediam aos seus sacerdotes poções mágicas capazes de conter a ação do tempo sobre seus corpos. Os alquimistas – também para vencer o tempo – buscavam o elixir da longa vida. Goya, renomado pintor espanhol, retratou o tempo de forma cruel: ele devora seus filhos. Uma alusão à destruição que o tempo traz aos homens – exatamente como Freud e a psicanálise interpretam a relação do homem com o tempo. 

É fato: refletir sobre o tempo é uma necessidade inerente a todos os contextos, épocas e civilizações. É aterrorizante. É fascinante e arrebatador. E Tempo Perdido retoma - de forma brilhante - essa reflexão. 

Detalhe de Saturno devora seu filho, de Rubens.
O tempo é devastador e irrefreável. 
 Renato Russo apresenta o trajeto completo do ser humano – desde o limiar da vida até o seu ocaso. Através dos versos “Todos os dias quando acordo” e “Todos os dias antes de dormir”, ele estabelece a passagem dos anos e as reflexões, medos e maturidade que o tempo nos traz, num exame de consciência (“Lembro e esqueço como foi o dia”). Também é nostálgico e pessimista, mostrando que não temos nenhuma segurança do que está além do tempo, não temos certeza alguma. Religiões, divindades e filosofias são promessas longínquas: “O que foi prometido ninguém prometeu”. Ao mesmo tempo, ainda imerso na tristeza, ele guarda uma esperança, um anseio de encontrar a paz com o passar do tempo: “Então me abraça forte/Me diz mais uma vez que já estamos /Distantes de tudo/Temos nosso próprio tempo”. Ou, ainda, um recomeço, sem preocupações com o tempo, afinal: “Somos tão jovens, tão jovens”.


As palavras contrastantes de Renato são similares àquelas contidas no livro bíblico do Eclesiastes, cuja autoria é atribuída ao rei Salomão, o homem mais sábio que já existiu, segundo antigas tradições judaicas e cristãs:

Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.
Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou;
Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar;
Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar;
Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar;
Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora;
Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar;
Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz. 

                                                                        (Eclesiastes 3:1-8)

Essas reflexões – contidas no texto bíblico, nos mitos, na arte e na ciência, e revisitadas pela canção da Legião Urbana –, evocam as angústias, anseios e desafios dos homens de todas as épocas. “O tempo está passando... E o que eu fiz? Para onde vou? Quanto tempo ainda tenho aqui?” são dilemas que, desde a sua origem, o ser humano carrega. Renato Russo também se perguntava sobre isso. Mas ele estava enganado. O tempo não foi seu inimigo. Assim que sua voz se calou, sua obra, tão apreciada, tornou-se atemporal. Aliás, o próprio líder da Legião Urbana experimenta, ainda hoje, distante de tudo, a ausência do tempo. Experimenta a plenitude . A eternidade. 

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