Pairot investiga: a influência da obra "O caso dos dez negrinhos", de Agatha Christie, na teledramaturgia brasileira

CENA 01/EXTERNA/ILHA/DIA
Plano geral: o barco chega à praia. Os tripulantes estão felizes. O cenário é paradisíaco. Descem e caminham descalços pela areia. Longo fade out. Gritos de horror.
A Rainha do Crime: mais
 de quatro bilhões de exemplares vendidos. 

A cena descrita acima, apesar de ser fictícia, é bastante familiar: são muitas as produções audiovisuais que ambientam histórias de crime e mistério em ilhas paradisíacas. A maior parte dessas produções – novelas, minisséries e seriados – bebe sempre numa mesma fonte: o romance O caso dos dez negrinhos (1939), de Agatha Christie.

Mesmo sendo alvo de críticas, é inegável a influência que a renomada escritora inglesa exerce sobre escritores – e roteiristas – de todo o mundo. A série norte-americana Lost é um exemplo de produto audiovisual que tece relações intertextuais com o enredo de O caso dos dez negrinhos – o livro mais vendido de Agatha Christie.

Lugares desertos, mistérios e
 personagens ambíguos também
 estão presentes em Supermax.
A teledramaturgia brasileira também se inspirou – desde a longínqua década de 60 – no conhecido romance de Agatha Christie para levar ao público uma estrutura narrativa inovadora. Os fantoches, telenovela escrita pela prolífica Ivani Ribeiro, evoca claramente os elementos do subgênero policial conhecido como crime do quarto fechado. Da mesma forma que a história de Christie, a trama de Ivani Ribeiro apresenta um milionário que atrai amigos – que cometeram um crime no passado – para um luxuoso hotel. E uma sucessão de crimes acontece depois disso.

O rebu – tanto a versão original de 1974 quanto o remake de 2014 – é outro exemplo de telenovela que evoca O caso dos dez negrinhos e sua atmosfera misteriosa. Na trama, durante uma festa luxuosa, ocorre, também, o crime do quarto fechado.

Exibida pela extinta TV Excelsior,
a telenovela Os fantoches, de Ivani Ribeiro,
ao utilizar elementos da obra de Agatha Christie,
destacou-se pela estrutura narrativa.
A atmosfera pesada, o clima soturno e mortes misteriosas está, da mesma forma, presente em Supermax, a recente minissérie da TV Globo. Ambientada num presídio desativado, na Amazônia, sob a aparência de um reality show, a história reuniu, novamente, personagens que cometeram crimes no passado. Aparentemente abandonados pela produção do programa, os protagonistas devem lidar com seus medos, desvendar as mortes misteriosas e lidar com fenômenos estranhos – e até sobrenaturais.

Um elemento peculiar e perturbador em O caso dos dez negrinhos  é a presença de estátuas – os dez negrinhos – que vão desaparecendo à medida que os personagens são assassinados. Além disso, um poema profético indica como cada crime ocorrerá – o que torna a trama ainda mais instigante:

“Dez negrinhos vão jantar enquanto não chove;
Um deles se engasgou, e então ficaram nove.
Nove negrinhos sem dormir: não é biscoito!
Um deles cai no sono, então ficaram oito;
Oito negrinhos vão a Devon em charrete;
Um deles quis ficar, então ficaram sete.
Sete negrinhos vão rachar lenha, mas eis
Que um deles se corta, então ficaram seis;
Seis negrinhos de uma colmeia fazem brinco;
A abelha picou um, e então ficaram cinco,
Cinco negrinhos vão ao fórum, a tomar os ares;
Um deles foi julgado, então ficaram dois pares.
Quatro negrinhos vão ao mar; a um tragou de vez
O arenque defumado, e então ficaram três.
Três negrinhos passeando no zoológico. E depois?
O urso abraçou um, e então ficaram dois.
Dois negrinhos brincando no sol, sem medo algum;
Um deles se queimou, e então ficou só um.
Um negrinho está sozinho, é só um;
Ele se enforcou, e não sobrará nenhum.”

Apesar da profecia poética – que aparece desde as primeiras páginas –, a história não é previsível. Muito pelo contrário: é repleta de surpresas. Esse livro explora, dentre outras coisas, o viés arquetípico da ilha - uma metáfora da própria existência humana. Mais que um romance policial, O caso dos dez negrinhos apresenta personagens ambíguos: todos são vilões e mocinhos ao mesmo tempo – como qualquer um de nós. 

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