"O jardim secreto", seus encantos e seus símbolos

Insígnia do paraíso terreno e celestial em quase todas as culturas, o jardim representa o estado primitivo do homem, sua obediência, sua pureza e sua inocência. Essas características ressoam em diversas obras – vide a narrativa do segundo capítulo do Gênesis, o livro bíblico, ou o conto O gigante egoísta, de Oscar Wilde – e são ainda mais evidentes em O jardim secreto, clássico infantojuvenil escrito pelas hábeis mãos de Frances Hodgson Burnett.

Ilustração da artista Tasha Tudor para uma edição do livro.
O cinema também já produziu várias adaptações
da obra de Frances Hodgson Burnett.
De origem inglesa, Burnett, a autora, viveu entre os séculos XIX e XX. Sua produção literária é voltada essencialmente para crianças – que também são as protagonistas de O jardim secreto, publicado em 1909. Mary Lennox é uma dessas personagens. É por meio de sua mudança para a casa do tio, na Inglaterra, que Mary conhece o primo, Colin, e faz amizade com Dickon, o grande cúmplice dos garotos nas lutas diárias contra a megera que governa a casa.

Depois dessa breve apresentação – discorrer mais sobre o enredo, que é tão conhecido, seria desnecessário –, podemos entrar nos lugares mais recônditos do jardim e mergulhar em seus significados.

Trancado à chave, o jardim – que dá nome ao livro e liga todas as personagens – carrega, no começo da história, um estigma mórbido. Há muitos anos, a mãe de Colin morreu no local. Desde então, o dono da propriedade resolveu trancá-lo. O jardim fechado e murado simboliza a reclusão das personagens – também representada pelo aspecto melancólico da casa.
O jardim do Éden, de Salisbury. Desde a Queda,
 o homem procura incansavelmente retornar ao Paraíso.

O soturno casarão onde vivem Mary e Colin é um lugar obscuro, cheio de segredos, de passagens secretas e lágrimas sufocadas. Funciona como um refúgio daqueles que têm medo do mundo lá fora, que se julgam incapazes e doentes – como a governanta faz Colin acreditar.

No entanto, com a chegada da inquieta Mary Lennox, o destino de todos os que vivem ali sofre uma guinada. Mesmo imersa nos mistérios da casa, a prima de Colin se vê fascinada ao descobrir a existência do jardim. Decide abri-lo. Vê um lugar sem vida. Essa situação encontra ecos na narrativa bíblica: uma vez fora do Éden, o homem descobriu que a Terra era um lugar triste e de sofrimento e que recuperar o Paraíso perdido seria impossível.

Psiquê abre a caixa dourada (acima) e Pandora (abaixo).
As telas de Waterhouse evocam os mitos
 gregos e retratam a curiosidade humana.
Ao abrir a porta do jardim, assim
como Pandora, Mary trouxe esperança
para seu primo e para seu tio.
A atitude transgressora de Mary – sim, seu tio ordenou que o lugar ficasse fechado para sempre – também evoca outras heroínas movidas pela curiosidade: a própria Eva do texto bíblico; a curiosa Psiquê da mitologia grega, que abriu o cofre de Perséfone; ou, ainda, Pandora, que, ao violar o lacre da caixa de Zeus, atraiu para si – e para todos nós – uma série de desgraças.  Contudo, da mesma forma que a Esperança ficou retida na caixa de Pandora, a fagulha de expectativa também ficou amalgamada às vontades de Mary: ela decide restaurar o jardim.

Com o auxílio de Dickon e de Colin, a garota remove folhas secas, semeia, rega, cuida. Assim, o jardim vai sendo revitalizado, e a literatura universal vai ganhando a abordagem de um tema bastante pertinente e bonito – a relação de respeito e amizade entre as crianças e a natureza. Mote que foi delicadamente revisitado pelo francês Maurice Druon (no livro O menino do dedo verde) e pelos brasileiros José Mauro de Vasconcelos (na obra Meu pé de laranja lima) e Walcyr Carrasco (na telenovela Eta mundo bom).


À medida que o jardim ganha cores, alegria e vida, Colin, outrora cadeirante, também conquista confiança, torna-se mais feliz e, por fim, fica completamente curado. No desfecho emocionante dessa história tão profunda – que mescla ecologia, solidão, orfandade e o valor da amizade –, Colin, sobre sua cura e felicidade, diz: “Foi o jardim que fez isso”. Sim, o paraíso perdido ainda pode ser recuperado – ao menos pela literatura e seus encantos.  

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