Na sua estante há discos e também livros: diálogos entre canções de Pitty e a literatura universal
Não é nenhuma novidade afirmar que rock e livros
formam uma amálgama. Recordo-me, neste momento, que até fiz um curso, há alguns
anos, sobre a influência de Edgar Allan Poe em bandas de rock, heavy metal e
gêneros afins. Embora, infelizmente, o autor de O Corvo não seja tão evocado pelos compositores brasileiros, outros
escritores afloram nos versos de muitas canções nacionais. A baiana Pitty é um
exemplo de cantora/compositora que sempre alude aos clássicos da literatura
universal em suas letras e videoclipes.
Música e literatura se encontram em Admirável Chip Novo, o primeiro disco lançado por Pitty. |
Talvez a referência mais nítida a essa arte esteja
no seu ótimo álbum de estreia – Admirável
Chip Novo. Evidentemente, o disco foi batizado com uma espécie de paródia/paráfrase
do título do romance inglês Admirável
Mundo Novo. Como Huxley, Pitty tece uma irônica representação da sociedade –
de formidável nosso mundo não tem nada. Na canção que dá nome ao disco, temos
um retrato da sociedade robotizada, mecânica, condicionada pelos seus aspectos
históricos e políticos – exatamente a mesma discussão levantada por Aldous
Huxley. Aliás, embora o clássico inglês seja a referência mais notável do
álbum, diversas outras distopias – tema recorrente na literatura – parecem ser
relembradas por esse trabalho musical.
Essa verve crítica – e literária – da cantora ganha
espaço também em composições como Máscara
(símbolo por excelência da dramatização e uma alusão ao romance V de Vingança, de Alan Moore, trama
também distópica e de cunho anarquista) e Teto
de Vidro (letra que recorre rapidamente ao místico e inspirador Evangelho Segundo João). Em O Lobo, também do primeiro álbum, Pitty
traça um curioso paralelo entre homem e animal, entre os modos de organização
de ambas as espécies e entre seus conflitos – o que nos reporta imediatamente
aos instigantes livros de Jack London (vide Caninos
Brancos e O Grito da Selva). Ainda
nesse disco, é possível identificar o poder que a música tem de equilibrar,
aproximar e curar a saudade – na conhecidíssima Equalize, Pitty dialoga com o belo mito grego de Pã e Syrinx.
O Mundo no Tarô Mitológico é representado pelo equilíbrio de um ser híbrido - masculino e feminino ao mesmo tempo. Esse conceito também está presente em Comum de Dois. |
Em trabalhos posteriores, os estigmas lancinantes da civilização
contemporânea continuam sendo abordados. Sim, Anacrônico,
título do CD lançando em 2005, é mais uma metáfora da artista baiana para
representar um mundo desconexo. Na literatura, o anacronismo é um conceito
utilizado para descrever fatos e invenções incoerentes com o período em que o
texto foi concebido. Trata-se, portanto, de um erro cronológico. Autores
acusados de anacronismo pela crítica literária da época não são raros – Júlio Verne
(com suas viagens extraordinárias) e Ray Bradbury (com seu talento visionário)
são apenas alguns deles. Imersa nessa
atmosfera de refúgio e retorno ao passado, a música Memórias apresenta o sobrenatural como busca de respostas – algo destoante
com o mundo “evoluído” em que vivemos. No videoclipe dessa canção, esses
elementos são reforçados pela presença de uma tábua ouija e de retratos malditos – outra temática recorrente na literatura.
Tema igualmente explorado no mundo das letras é a figura
feminina. Em Desconstruindo Amélia (símbolo
da mulher submissa), Pitty rememora Balzac e seu célebre romance A Mulher dos Trinta Anos. Seguindo o mesmo caminho, Comum de Dois (nome
extraído da gramática) está repleta de ecos do delicado mito dos andróginos,
história narrada pelo sábio grego Platão, em O Banquete. Da mesma forma, a hodierna composição A Serpente também alude à mitologia, à
alquimia, ao milenar símbolo do ouroborus e ao conceito de Eterno Retorno,
cunhado por Nietzsche, na sua obra A Gaia
Ciência.
Personagens espanhóis também sopram seus ventos – os
mesmos que giram os moinhos e inspiram cavaleiros – na produção musical de
Pitty. Na belíssima Na Sua Estante,
vê-se uma possível alusão ao encantador Dom
Quixote de La Mancha, de Cervantes. Em versos como “Dessa vez, eu já vesti
minha armadura. E mesmo que nada funcione, eu estarei de pé, de queixo erguido”,
tem-se uma sutil relação com os ideais quixotescos.
Francesa, inglesa, norte-americana, espanhola... e
muitas outras referências literárias de nacionalidades distintas estão diluídas nas canções de Pitty. Na sua
estante (este trocadilho é inevitável!), além de discos, Pitty guarda várias e
várias histórias – que afloram de forma explícita ou oblíqua em suas
composições. Isso nem Balzac poderia prever!
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