"Ponte para Terabítia": uma travessia ao mundo dos símbolos

Alguns textos são antigos dentro de nós. Antes do desejo de correr à pena e acomodar as palavras no papel – ou numa tela –, as ideias crescem em nosso interior. Estas linhas são um exemplo disso. Ao escrevê-las, reporto-me aos tempos áureos da Sessão da Tarde. Foi exatamente numa das minhas excursões vespertinas pelas primeiras janelas que me apresentaram o mundo – os filmes e as novelas da TV – que conheci Meu primeiro amor, filme infantojuvenil sobre amizade e morte. Por anos, o desfecho pouco usual dado a uma história para crianças fez com que a saga de Vada e Thomas J. Sennett se tornasse uma das minhas produções favoritas. No entanto, anos depois, conheci outro filme de temática semelhante. A simplicidade do enredo, o amor ainda mais sutil entre os personagens e as aspirações artísticas de Jesse fizeram com que Ponte para Terabítia ocupasse o lugar da produção estrelada por Dan Aykroyd e Macaulay Culkin.

Pôster original do filme. Fonte: Wikimédia.
Fiel ao livro homônimo de Katherine Paterson – até por que o roteirista é filho da autora –, Ponte para Terabítia vai além, muito além, de uma história para entreter crianças nas férias. Seu mote – sobre rupturas, opressão, incompreensão e a perda de quem amamos – é delicadamente adornado por uma moldura tão comum aos pequeninos: a força da imaginação.

É nessa capacidade que está sustentado o reino de Terabítia – a terra mágica que dá nome ao filme e liga os personagens. O lugar de exílio e aventura criado por Leslie e Jesse está repleto de perigos. Árvores, por exemplo, não são apenas vegetais – são perigosos trolls, criaturas disformes que saem dos subterrâneos para guerrear com os protagonistas. Galhos são espadas. A casa na árvore é um imponente castelo. E os garotos são os soberanos desse pequeno pedaço de mundo colonizado pelos sonhos. Um mundo que só pode ser verdadeiramente enxergado por meio da leitura das entrelinhas e da sensibilidade –  as mesmas características que devemos ter para contemplar o filme.

Além das criaturas mágicas, Ponte para Terabítia está cheio de significados profundos e transcendentes – visível somente àqueles que estão dispostos a imergir em suas sutilezas. A arte de Jesse – seus desenhos – é uma metáfora do anseio que o homem tem de encontrar-se, de viver, de dar forma aos elementos dos seus sonhos. E Terabítia é a materialização desse lugar utópico. Ladeada por árvores – símbolos da ligação entre dois mundos –, o reino é um recinto de memórias. Aliás, na Psicanálise, locais como essa floresta mágica são vistos como símbolos do inconsciente. De fato, é nesse pedaço de chão que a verdadeira liberdade pode ser exercida em sua plenitude – sem a opressão dos pais, da colega agressiva da escola e das agruras da vida. Isso não significa que Terabítia esteja mergulhada no marasmo – há sempre uma aventura nova, uma descoberta instigante, batalhas para estimular o corpo e a mente.

No Tarô Mitológico, o Hierofante é Quíron, um centauro.
Como Jesse, ele é responsável por ligar os mundos. 
A maior luta de Jesse, contudo, é a morte de Leslie – o momento mais comovente, belo, angustiante e simbólico do filme. Ao deixar a amiga e viajar para uma exposição com a professora de artes, o garoto assume a dor do adeus que não pode ser dado, dos braços que não esperaram um último e longo aconchego, das palavras que não foram ditas. A morte repentina de Leslie – embora a trama nos prepare desde o início para isso – é representada como uma travessia para a plenitude.
Sem a presença do amigo, a garota decide se exilar em seu mundo mágico. Para isso, atravessa o rio que separa os mundos – os rios correm para o mar: simbolizando a união do individual com o absoluto. Além disso, rios que separam vivos e mortos são constantes na mitologia: o sagrado Styx, que faz fronteira com o Hades, é um exemplo disso.

Na travessia de Leslie, porém, a corda, tão usada para levá-la de uma margem à outra, rompe-se. Entra em cena, nesse momento, outro significado profundo: a corda é, desde tempos longínquos, um símbolo da transição entre dimensões espirituais distintas. Personagens que morreram tragados pelas águas também estão presentes em culturas recuadas: Hele e Ícaro, dois mitos gregos, afogaram-se durante suas travessias.

Mas, ao se restabelecer, Jesse resolve unir para sempre esses dois mundos – constrói uma ponte. A ponte para Terabítia. Ao ligar o mundo real e o mundo dos sonhos, o consciente e o inconsciente, a vida e a morte, o garoto assume ares de pontifex, antiga nomenclatura dada aos sacerdotes – e que significa “fazedor de pontes”. Afinal, a função do sacerdote é estabelecer relações entre Deus e os homens, entre as leis divinas e as leis terrenas, entre a vida plena no mundo mortal e as verdades imperecíveis do Além. Sigamos também construindo - e atravessando - pontes em direção à eternidade, em direção aos mistérios da vida, em direção a nós mesmos. 

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