A força dos mitos: a riqueza simbólica da atual novela das 9 h da Rede Globo

A Sereia, de Waterhouse.
A inspiração para o personagem
 Ritinha veio de um mito milenar.
Hábil profetisa, Glória Perez, ao escrever a sinopse de A Força do Querer, atual trama das 21 h, certamente previu o fascínio que sua história exerceria sobre os telespectadores. E, não por acaso, inseriu na narrativa o símbolo máximo da sedução – a sereia. O personagem de Ísis Valverde, contudo, é apenas uma das muitas figuras mitológicas/simbólicas/literárias/arquetípicas/atraentes da novela do horário nobre.

Moradora da fictícia Parazinho e filha de outro personagem lendário – o boto –, Ritinha cresce nadando em meio aos peixes e outras criaturas aquáticas. Por isso, a garota desenvolve uma relação mágica com a água, acreditando que é do rio que vem a sua força. Representante legítima de sua espécie, a filha de Edinalva (Zezé Polessa) enreda Zeca (Marco Pigossi) em seus encantos, mas vai viver, no Rio de Janeiro, com Ruy (Fiuk) – ambos também ligados por uma profecia mágica envolvendo o mistério das águas. Lá, em constantes conflitos com a sogra – a personificação da própria deusa Vênus, com seu culto ao feminino –, Ritinha continua a explorar a riqueza mítica de sua terra: seja utilizando os banhos especiais, invocando rezadeiras ou aludindo a pessoas astutas como “caninanas” – nítida inspiração na Lenda da Cobra Norato e Maria Caninana, recolhida pelo renomado folclorista Câmara Cascudo.

Domínio da situação e controle
 são alguns dos significados da
carta A Força - características
também almejadas pelos
 personagens de Glória Perez.
Em seu novo lar, a sereia de Parazinho vai conviver com outra figura tão encantadora quanto ela – Ivana (Carol Duarte), irmã de Ruy. Crescida em meio a maquiagens, roupas sensuais e revistas de moda – além dos constantes conselhos da mãe, a irretocável Joyce (Maria Fernanda Cândido) –, a jogadora de vôlei não se sente parte do exuberante universo feminino. Diante do espelho – símbolo da vaidade e do autoconhecimento –, Ivana demonstra sua angústia e insatisfação, seu inconformismo com o próprio corpo. Uma alma masculina num invólucro feminino. A jovem anseia por encontrar-se no mundo. Suas confissões estão cheias de ecos de Alice no País do Espelho, de Lewis Carroll; O Banquete, de Platão; de Frankenstein, de Mary Shelley; ou ainda do conto machadiano O Espelho. O encontro com Tê (Tarso Brant) também nos reporta ao clássico A Terra dos Meninos Pelados, do nosso Graciliano Ramos. O diálogo de Ivana com o transexual evoca as descobertas de Raimundo na mágica Tatipirun.

Com destreza, Glória imprime, capítulo após capítulo, a distinção entre identidade de gênero e orientação sexual  – basta lembrarmos de Nonato (Silvero Pereira) e suas conversas com Biga (Mariana Xavier).

Também impressos com as tintas fortes da ficção estão os mitos gregos. Sim, além da sereia, que nos remete à Odisseia, de Homero, ou até mesmo aos textos folclóricos de Ricardo Azevedo e Mônica Stahel Fernades, A Força do Querer dialoga com o mito de Hades e Perséfone, por exemplo. De estudante de Direito à soberana do tráfico, ganhando, inclusive, o epíteto de “perigosa”, Bibi (Juliana Paes) personifica a filha de Deméter. Como ela, Bibi fez a transição entre o mundo calmo e sereno da fertilidade para imergir no submundo, tornando-se, como Perséfone, rainha dele.

O rapto de Perséfone, de Luca Giordano.
Como a esposa de Hades, Bibi também
cruzou os portões do submundo.
Essa mudança é representada pelo incêndio do restaurante (o fogo nos faz lembrar de Hades e seus domínios) e pela fuga entre os corredores estreitos do morro (os labirintos íngremes do mundo inferior). Para tornar a cena ainda mais simbólica, Bibi corre de um cachorro – uma alusão a Cérbero, o guardião dos infernos, que tenta devorar todos aqueles que pensam em voltar atrás.

Aliás, é no núcleo de Bibi que a trama apresenta algumas das situações mais fortes e emocionantes. No aniversário de Dedé, por exemplo, somente ela e sua mãe, Aurora (nome que também já alude à mitologia) comparecem. Os vizinhos temem se aproximar do garoto pela conduta do pai, o traficante Rubinho (Emílio Dantas). Desolado, Dedé é surpreendido por Yuri (Drico Alves) fantasiado de Goku. Ao entrar na casa de Bibi, o cosplayer personifica a própria ficção, que é capaz de curar nossa orfandade.

Numa relação quase metalinguística (a ficção dentro da ficção), temos a representação da própria telenovela, produto ficcional que rompe as barreiras do veículo que o transmite e invade nossa sala depois do jantar, fazendo-nos dormir mais reflexivos e encantados. Encantados por botos, sereias e águas profundas. Encantados pelas antiquíssimas histórias de culturas tão distintas emergindo de uma tela luminosa. Encantados pela A Força do Querer, pela força dos mitos, pela força do texto de Glória Perez. Encantados pela força da vida.




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