A força dos mitos: a riqueza simbólica da atual novela das 9 h da Rede Globo
A Sereia, de Waterhouse. A inspiração para o personagem Ritinha veio de um mito milenar. |
Moradora
da fictícia Parazinho e filha de outro personagem lendário – o boto –, Ritinha cresce
nadando em meio aos peixes e outras criaturas aquáticas. Por isso, a garota desenvolve uma
relação mágica com a água, acreditando que é do rio que vem a sua força. Representante
legítima de sua espécie, a filha de Edinalva (Zezé Polessa) enreda Zeca (Marco Pigossi) em seus
encantos, mas vai viver, no Rio de Janeiro, com Ruy (Fiuk) – ambos também ligados
por uma profecia mágica envolvendo o mistério das águas. Lá, em constantes
conflitos com a sogra – a personificação da própria deusa Vênus, com seu culto
ao feminino –, Ritinha continua a explorar a riqueza mítica de sua terra: seja
utilizando os banhos especiais, invocando rezadeiras ou aludindo a pessoas
astutas como “caninanas” – nítida inspiração na Lenda da Cobra Norato e Maria Caninana, recolhida pelo renomado folclorista Câmara Cascudo.
Domínio da situação e controle são alguns dos significados da carta A Força - características também almejadas pelos personagens de Glória Perez. |
Também
impressos com as tintas fortes da ficção estão os mitos gregos. Sim, além da sereia,
que nos remete à Odisseia, de Homero,
ou até mesmo aos textos folclóricos de Ricardo Azevedo e Mônica
Stahel Fernades, A Força do Querer dialoga
com o mito de Hades e Perséfone, por exemplo. De estudante de Direito à soberana
do tráfico, ganhando, inclusive, o epíteto de “perigosa”, Bibi (Juliana Paes) personifica
a filha de Deméter. Como ela, Bibi fez a transição entre o mundo calmo e sereno
da fertilidade para imergir no submundo, tornando-se, como Perséfone, rainha
dele.
O rapto de Perséfone, de Luca Giordano. Como a esposa de Hades, Bibi também cruzou os portões do submundo. |
Essa
mudança é representada pelo incêndio do restaurante (o fogo nos faz lembrar de
Hades e seus domínios) e pela fuga entre os corredores estreitos do morro (os
labirintos íngremes do mundo inferior). Para tornar a cena ainda mais
simbólica, Bibi corre de um cachorro – uma alusão a Cérbero, o guardião dos infernos, que tenta devorar todos aqueles que pensam em voltar atrás.
Aliás,
é no núcleo de Bibi que a trama apresenta algumas das situações mais fortes e
emocionantes. No aniversário de Dedé, por exemplo, somente ela e sua mãe,
Aurora (nome que também já alude à mitologia) comparecem. Os vizinhos temem se
aproximar do garoto pela conduta do pai, o traficante Rubinho (Emílio Dantas).
Desolado, Dedé é surpreendido por Yuri (Drico Alves) fantasiado de Goku. Ao entrar
na casa de Bibi, o cosplayer personifica a própria ficção, que é capaz de curar
nossa orfandade.
Numa
relação quase metalinguística (a ficção dentro da ficção), temos a
representação da própria telenovela, produto ficcional que rompe as barreiras
do veículo que o transmite e invade nossa sala depois do jantar, fazendo-nos
dormir mais reflexivos e encantados. Encantados por botos, sereias e águas profundas.
Encantados pelas antiquíssimas histórias de culturas tão distintas emergindo de
uma tela luminosa. Encantados pela A
Força do Querer, pela força dos mitos, pela força do texto de Glória Perez.
Encantados pela força da vida.
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