O velho, o mar e um mergulho na alma humana
A
releitura de um clássico é sempre um exercício de imersão – principalmente
quando essa obra tem como cenário o mar. E é desse mergulho que acabo de
retornar. O texto de Ernest Hemingway me arrastou mais uma vez (como uma
correnteza furiosa). Nessa nova viagem, o ganhador do Prêmio Nobel de 1954 me
fez refletir sobre todas as metáforas contidas em seu texto. Alusões que fazem
com que O Velho e o Mar seja um
agradável repositório de símbolos sobre a alma humana.
Ilustração do livro O Velho e o Mar feita por Raymond Sheppard. A luta do personagem contra o espadarte é ambígua e cheia de significados. |
Embora
reconheça o valor dessa obra, acredito que não poderia compreendê-la sem antes ter
singrado outras águas. Não sou marinheiro de primeira viagem. Já
naveguei muito por um gigantesco mar de histórias marítimas. Meu primeiro
comandante foi o escocês Robert Louis Stevenson. Nas páginas de A ilha do tesouro, aos 9 anos de idade,
conheci os perigos e as riquezas do oceano. Anos mais tarde, Daniel Defoe me
fez ficar exilado por tardes – com o náufrago Robinson Crusoé. Nessa mesma época, conheci Cyrus e alguns
fugitivos que migraram para A ilha
misteriosa, de Júlio Verne. Não satisfeito, esse mesmo autor me fez
mergulhar ainda mais fundo – em Vinte Mil
Léguas Submarinas. A brasileira Lygia Bojunga Nunes fez o oposto: me fez transcender com Lá no Mar, texto cheio de ecos da obra de Hemingway.
Confesso
que – na superfície ou nas profundezas – o mar, na literatura, sempre exerceu
um fascínio inenarrável sobre mim. Não é à toa que ele simboliza, na
psicologia, a alma, os sentimentos e os fluxos da vida – características
exploradas magistralmente por Hemingway em sua obra-prima.
O
livro, já no seu limiar, apresenta a bela relação entre o protagonista – o
velho – e Manolín, um jovem que vive no mesmo local que o personagem principal.
Nos diálogos, ficam evidentes o respeito e a amizade que um nutre pelo outro. Também
nítido é o interesse que ambos têm pelo mar.
Sem
pescar há muito tempo, o velho decide contrariar a maré de azar e parte para
uma aventura no oceano. Essa viagem é o principal elemento do enredo. Sozinho,
no meio das águas, o velho faz profundas reflexões sobre sua juventude, sobre o
que realmente necessita para viver e sobre o valor da amizade – ele lamenta
muito pela ausência de Manolín. Há ainda belas confissões do personagem aos
elementos da natureza. Ele declara seu amor à Lua, às estrelas e até mesmo ao
seu, aparentemente, rival – o espadarte, o peixe que faz fremir seu barco e sua
vida.
No Tarô de Marselha, A Roda da Fortuna simboliza as mudanças, a necessidade de escolher com sabedoria (temas de O Velho e o Mar)e as várias encarnações da alma. |
Após
muita luta para fisgá-lo, o velho consegue, depois de dias, matá-lo. Enorme, o
peixe é amarrado ao barco, que é, a partir de então, constantemente atacado por
tubarões durante o caminho de volta. Inclusive, pelas investidas desses ferozes
predadores, a luta do velho parece ter sido em vão – ao retornar para casa, só
há restos do peixe, uma estrutura óssea disforme e carcomida. Evidentemente
cansado e frustrado, ao chegar a casa, o velho encontra os cuidados de seu
pupilo e deita-se para dormir.
Com
esse enredo simples, Hemingway conseguiu imprimir verdades tão profundas no
cânone literário – como todo bom autor o faz. A jornada do velho é o mesmo
itinerário percorrido por todos nós. Cada ser humano traça uma rota e se lança
sobre ela. Todos nós realizamos nossos êxodos – alguns dolorosos, outros
alegres. Projetamos sonhos, mas às vezes descobrimos que fracassamos. Nem
sempre conseguimos levar o peixe inteiro para casa. Em alguns momentos,
precisamos mutilá-lo. Decepar as partes que não são tão úteis. É doloroso. Mas
abdicar faz parte da vida.
A simbologia do peixe nos remete
tanto a Jesus quanto ao
deus semítico Dagon (acima).
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Seja
como for, a leitura de O Velho e o Mar
(não me contenho com os trocadilhos) é um divisor de águas em nossas vidas. É
uma obra cativante, libertadora, capaz de nos fazer refletir sobre os rumos que
damos à nossa existência. Trata-se de uma trama que nos faz pensar sobre a
solidão. É um livro que nos ensina a ver a vida sob uma nova perspectiva. É um
livro sobre a simplicidade e a comunhão da alma com o Universo. É um livro que
nos faz sonhar. É uma bússola para os nossos corações. Boa leitura. Boa viagem.
Bom sono. Bons sonhos – com leões.
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