“The Scientist”, de Coldplay, e os amores que ultrapassam a morte

A madrugada já vai alta. Da janela do quarto, posso ver uma lua sonolenta e sempre encantadora. E é sob esse símbolo milenar dos apaixonados que este texto tem o seu limiar. Também sobre amantes – e igualmente encantadora – é a canção que ressoa e embala o autor destas linhas: The Scientist, da banda de rock alternativo Coldplay.

Embora esteja predominantemente imersa numa temática abordada corriqueiramente pela música – o amor –, a letra, concebida pelo grupo norte-americano, alude à outra situação recorrente nas produções artísticas: a separação dos amantes pela morte de um deles. 

Segundo volume da Trilogia das Sombras.
Abbey, a protagonista, também
vive um amor fantasmagórico.
Esse mote, que já foi explorado por Shakespeare (Romeu e Julieta, inspirado numa lenda ainda mais antiga, Píramo e Tisbe), pelo português Camilo Castelo Branco (Amor de Perdição) e por Emily Brontë (O Morro dos Ventos Uivantes), ganha ares ainda mais místicos e sombrios em The Scientist – título, aliás, quase irônico, afinal, “Ciência e progresso não falam mais alto que o meu coração”.

O verdadeiro cientista, na canção, é aquele que tem capacidades alquímicas e cabalísticas – que sabe ler e decodificar números e figuras para trazer a pessoa amada de volta. Inclusive, esse poder transformador fica evidente na evocação de um símbolo clássico da alquimia, o dragão que persegue a própria cauda. Em versos como “Correndo em círculos” e “Oh, e eu corro para o começo”, tem-se uma referência à eternidade (círculos não têm início ou fim) e até possivelmente à reencarnação e à comunicação com os mortos (“Volte e me assombre”).

No Tarô Mitológico, o Três de Copas
simboliza a união de mundos
 distintos - terreno e espiritual.
Em toda a canção, essa ideia de retorno fica nítida (nem que isso desafie a própria sanidade do compositor). Essa mesma atmosfera é encontrada em diversas obras da literatura, do cinema e da TV – sejam elas produções antigas ou recentes.

No já citado romance de Emily Brontë, identifica-se exatamente o mesmo clima propalado pela canção: Heathcliff pede para que Catherine retorne do Além e o perturbe. A dramaturgia televisiva já se enveredou diversas vezes por esse caminho – sempre com sucesso. Alma Gêmea (2005), A Viagem (1994), Escrito nas Estrelas (2010) e a excelente Além do Tempo (2015) são alguns exemplos notórios de tramas sobre amores que transcendem a morte. O arcaico Ghost, do outro lado da vidas se encarrega de apresentar a relação amor-espiritualidade-transcendência-retorno no cinema.

A abominada (pela crítica mais conservadora) literatura para adolescentes contemporâneos também recorre sempre aos enredos dessa natureza. Contudo, as obras que estabelecem de forma ainda mais nítida essa relação são a série Fallen, de Lauren Kate, e a Trilogia das Sombras, de Jessica Verday. Ao longo de todo o texto, Kate apresenta a separação de Luce e Daniel pelas sucessivas vidas – e seus eternos reencontros. Na Trilogia das Sombras, Abbey, a protagonista, apaixona-se por  Caspian, um fantasma, ou melhor, uma sombra. Como se isso não fosse suficiente para tornar o livro gótico, os capítulos são todos laureados por epígrafes extraídas do clássico A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça, de Washigton Ivring.

A alusão à morte está igualmente presente no videoclipe da canção The Scientist. Nele, a namorada do vocalista parte após um acidente de carro. Inclusive, essa partida para o Além é narrada de forma inversa. O vídeo inteiro segue uma cronologia descomunal. As ações, como a letra sugere, rumam-se ao começo, ao limiar da jornada. Assim, ao voltar para a estrada serena, os amantes ainda estão felizes. Inevitavelmente, isso nos remete, mais uma vez, à literatura – o homem sempre desejou voltar ao início (o temido livro do Apocalipse, por exemplo, termina com o retorno ao Paraíso).
Grafado entre duas linhas infinitas,
o título sintetiza a trama de Elizabeth Jhin:
 um amor que ultrapassa a morte.

Infelizmente, os cientistas ainda não podem nos proporcionar viagens no tempo ou a volta ao princípio (H. G. Wells e David Fincher sonharam tanto com isso). Coldplay tem razão. De fato, a ciência, o progresso e a razão ainda não falam mais alto que o coração. Enquanto esse prodígio não se realiza, continuemos clamando para que aqueles que amamos voltem e nos assombrem. 

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