A travessia de Ivana: uma bela alusão à morfologia do conto maravilhoso

Uma metade do rosto está diáfana; a outra, obscurecida. Os cabelos soltos, desgrenhados. Os olhos assustados. E felizes. O espelho, que sempre foi seu martírio, agora parece amigo. Por meio dele, ela começará a ser quem realmente é. A tesoura corta devagar. Os cabelos longos e louros dão lugar a uma cabeça quase masculina. Isso é só o limiar da jornada.

Após cortar os cabelos,
 símbolo da força e sedução feminina,
Ivana começa sua travessia.
 Foto: Reprodução.
Não foi fácil para Ivana (Carol Duarte) revelar à família sua real identidade. A sequência que precede a cena da transformação – descrita acima e dirigida sob a regência inconfundível de Rogério Gomes – foi marcada pelo clã dos Garcia sendo confrontado. Após uma longa discussão (8 minutos), a jovem pergunta se os pais e o irmão a aceitam como ela é – um homem trans. O silêncio, o choro, os olhares de repreensão e desespero fornecem uma resposta negativa e fazem com que Ivana se tranque no quarto e comece o seu rito de passagem – evocando, a partir daí, múltiplas referências literárias, sobretudo alusões à estrutura do conto maravilhoso.

O rosto dividido entre luz e sombras nos reporta ao clássico O médico e o monstro, do escocês Robert Louis Stevenson. Como o protagonista dessa história, o Dr. Jekyll, que oscila entre duas personalidades e precisa de uma substância para se encontrar, Ivana também inicia a sua transição. Sim, embora ela já tenha sorvido o hormônio masculino capítulos antes, é a partir da cena das madeixas sendo cortadas que a transformação, de fato, começa. A face eclipsada, com as sombras moldando uma nova fisionomia, também alude ao conhecido conto de fadas A bela e a fera. Como a fera, é na solidão que Ivana começa a morrer. Mas essa morte é necessária. É ela que trará o príncipe aprisionado naquele envoltório medonho. Nesse momento fúnebre, Joyce (Maria Fernanda Cândido), a mãe de Ivana, entra em cena e traz, de forma comovente, uma releitura da Pietà, conhecida escultura de Michelangelo. 

Essa cena marcou apenas o ápice dramático de uma trajetória que começou há muito tempo. O itinerário de Ivana foi longo. Longo e cheio de elementos que nos remetem à natureza no conto maravilhoso. Este tipo de texto, amplamente estudado pelo russo Vladímir Propp, tem como algumas características: o afastamento, o auxiliar mágico, a transgressão, a travessia e o travestismo.
A posição de Joyce diante do novo filho nos
remete à conhecida  escultura de Michelangelo.

Para tomar a decisão de se revelar à sua família, a jovem passa dias exilada na casa de Nonato/Elis. É lá, com a ajuda desse ser mágico, que a nova vida de Ivana (em breve, Ivan, nome de origem russa, inclusive) começa a ser gerada. Vale lembrar que Nonato/Elis também incorpora as características morfológicas descritas por Propp. Como nas típicas histórias de encantamento, Nonato se transforma em Elis, mas tem hora para reverter a transformação. Sim, durante o dia, volta a ser homem, para enfrentar a sociedade patriarcal – claríssima alusão ao rito que Propp, em As raízes históricas do conto maravilhoso, chama de “travestismo”.

Os destinos de Ivana e Nonato se cruzam num momento comum a todos que transcendem aquilo que é considerado o padrão – uma situação de preconceito. Na rua, vestida de homem, Ivana é humilhada e defendida por Nonato, que, a partir de então, torna-se o seu auxiliar mágico (aquele descrito por Propp). As sequências nas quais esses personagens sofrem com a incompreensão da sociedade nos reportam ao livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll – se você não é uma rosa vermelha, como a maioria, deve ser destruída.

A travessia - cheia de transgressões - não é fácil. Mas, aos poucos, Ivana e Nonato vão conquistando as pessoas – dentro e fora da tela. Tanto é que os bons e justos ventos da ficção parecem soprar um belo e emocionante desfecho para a história dessa dupla. Um final à moda de um legítimo conto maravilhoso. Enquanto aguardamos esse final espetacular, vamos sonhando também com outra travessia – a chegada ao Outro Lado do Paraíso...




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