Uma ode a Jean Valjean

Foi no recreio. Pouco depois de o sinal tocar, minha professora de Português me estendeu uma – excelente – edição de Os Miseráveis, de Victor Hugo. Fora um pedido meu, um empréstimo. Em duas tardes, devorei aquela deliciosa adaptação escrita por Walcyr Carrasco para a (que saudade dela!) coleção Literatura em minha casa. Eu estava na quinta série do ensino fundamental e ainda era um neófito na literatura do século XIX.

Jean Valjean, ilustração de Gustav Brion
 para a primeira edição de Os Miseráveis.
É notável as semelhanças arquetípicas
desse personagem com
 O Louco do Tarô de Marselha.
Por muito tempo, aquela história permaneceu em meu imaginário. Hoje, muitos anos depois, ao terminar minha segunda releitura do texto original, com os olhos marejados de lágrimas, percebo o quanto ainda amo Monsenhor Benvindo, Fantine, Cosette e Jean Valjean – sendo este último o personagem mais encantador, para mim, nessa obra-prima da literatura universal.  

À primeira vista, Valjean é rude. Um forasteiro sem referências. Um homem desprezível. Um ex-presidiário. Foi preso por roubar um pão para alimentar sua irmã e seus sobrinhos. Desde então, sua vida se tornou um tormento sem fim. Sem lugar para se hospedar, Jean Valjean encontra abrigo somente na casa de um religioso. E, no meio da noite, trai a sua confiança. Contudo, após a fuga interceptada, recebe a compaixão de sua vítima e muda sua rota – transforma-se num novo homem. É nessa vida renovada que Fantine cruza seu caminho e, posteriormente, a doce Cosette também.

Num enredo cheio de reviravoltas – folhetim puro, exatamente como eu gosto –, a personalidade de Jean Valjean vai se descortinando e envolvendo o leitor. As virtudes e a beleza desse personagem o fazem transcender – e muito – o rótulo de miserável expresso no título da obra.
O Louco no Tarô de Marselha.
Como Valjean, essa figura vaga
em busca de respostas e é
sempre incompreendido
pelas pessoas à sua volta.

O ato de roubar alimento para uma viúva e seus filhos em tempos maus é o que desencadeia toda a perseguição ao protagonista. Ação, sem dúvida, nobre – e também uma crítica à sociedade. Sua promessa a Fantine – de encontrar e lhe devolver a filha – também o enaltece sobremaneira.

A prostituta não chega a rever sua menina, mas a atitude heroica de Jean ao tirá-la das garras da família de vigaristas – os Thénardier – certamente serve de consolo para a alma daquela pobre mãe. Aliás, ele não apenas resgata a garota como lhe dedica uma devoção incondicional.

Assexual e sem tempo para paixões, Jean Valjean empenha-se em dar a Cosette educação (ele consegue uma vaga para ela num internato de religiosas), carinho e amor de pai. Os sentimentos puros, verdadeiros e sem qualquer resquício de interesse sexual (mesmo quando Cosette se torna uma bela mulher) fazem de Valjean um ser ainda mais admirável. Ele, inclusive, no final da trama, salva o amado de sua pupila da morte.


Há muitos leitores que afirmam que a narrativa de Victor Hugo apresenta Jean Valjean como um homem que se redimiu dos seus erros após a atitude generosa do Monsenhor Benvindo. Na verdade, nunca acreditei que Valjean fosse mau. É claro que roubar (ainda mais duas vezes!) é errado. Mas acredito no contorno crítico que emoldura esse personagem e toda a obra. Os próprios elementos que são roubados já carregam uma profunda simbologia dos anseios do personagem – roubar um pão é ansiar por alimento físico e espiritual, é desejar a vida; roubar castiçais significa estar desesperado por luz, luz espiritual.  Por isso, creio seguramente que tudo o que Jean Valjean fez foi por amor. Amor aos filhos que não teve. Amor à vida que não pode viver. Amor às feridas do mundo. Às feridas dos pobres. Amor aos mais miseráveis que ele mesmo. Afinal, como Shakespeare afirmou certa vez: "Os miseráveis não têm outro remédio a não ser a esperança".

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