Como esquecer tantas referências à obra de Emily Brontë no filme de Malu de Martino?

O enredo de Como esquecer é simples e sem grandes reviravoltas: uma mulher é abandonada pela companheira. Desolada, ela conta apenas com o auxílio de um amigo, que também tem de lidar com a ausência do namorado, morto há algum tempo. Além da solidão, da nova casa e das perdas, ambos têm um interesse em comum – O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë.

A expressão tensa de Júlia (Ana Paula Arósio)
está presente em todo o filme.
 Ao fundo, escritos na lousa, vê-se apontamentos sobre
O Morro dos Ventos Uivantes.
Foto: reprodução.
Esse clássico monumental aparece na narrativa, inicialmente, a partir das falas de Júlia (Ana Paula Arósio), que é professora de literatura inglesa numa universidade. Em diversos momentos do filme, ela surge com exemplares do livro nas mãos – seja nos momentos de dor ou nos belos flashbacks (momentos felizes, em Londres, com Antônia, sua antiga companheira). A intelectual ainda irrompe, em várias sequências, escrevendo sobre a obra.

Júlia, inclusive, dá a Hugo (Murilo Rosa), seu aparentemente único amigo,  uma edição do romance de Emily Brontë, ao saber que ele será Heathcliff numa produção para a televisão. Áspera, Júlia, quando ouve essa notícia, até resmunga: “Vão destruir a obra”.

Outra personagem que também evoca frequentemente O Morro dos Ventos Uivantes é Carmem Lígia (Bianca Comparato). Mestranda em literatura e orientada por Júlia, a jovem sempre faz comentários sobre como as turbulências na vida pessoal de uma autora podem refletir em sua obra. Embora Júlia não reconheça, a trama de Catherine e Heathcliff muito guarda das experiências sombrias e dolorosas que Emily Brontë vivenciou.

A aluna ainda menciona outras escritoras que fizeram de seus livros espelhos de suas vidas – Virgínia Woolf e Cassandra Rios. A citação dessas autoras não é por acaso – é totalmente coerente com o universo temático do filme –, haja vista que ambas eram homossexuais.

Antiga edição de O Morro dos Ventos Uivantes.
Perdas, mortes e personalidades tempestuosas
estão presentes na obra de
Emily Brontë - e no filme de Malu de Martino.
Todavia, além das constantes menções à obra de Brontë, é notável que a própria estrutura narrativa do filme se alimenta, em alguns momentos, desse clássico. A cena em que Júlia afirma que fantasmas são muito reais nos reporta ao romance inglês (Catherine morreu e voltou para assombrar). A temática da ausência/morte também é encontrada no mote de Wuthering Heights (Heathcliff foi embora). A professora de literatura, inclusive, é tão ríspida quanto boa parte dos personagens que habitam o casarão em Yorkshire (basta observar a cena em que sua aluna interrompe o almoço de Júlia com os amigos). Além disso, as cenas de Júlia na chuva e o momento no qual uma tempestade ameaça cair sobre o luau conferem um tom pálido – o mesmo do livro – à trama.


Por todas essas características e por todos esses profícuos diálogos intertextuais, Como esquecer é um filme digno de ser visto, analisado, elogiado e, acima de tudo, lembrado. 

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