Solfieri, o melhor personagem do Ultrarromantismo brasileiro


Puxe uma cadeira, retire uma taça do armário e abra uma garrafa de vinho (a melhor que tiver). É necessário. Essas ações lhe trarão aquilo que a leitura deste texto pede: delírio, insanidade, prazer. Não poderia ser diferente – ele trata de uma conversa realizada numa taverna, lugar, por natureza, de loucura e desvarios. E é exatamente nesse cenário, sentado à mesa, ébrio e febril, que encontramos Solfieri – personagem-narrador que abre os relatos macabros de Noite na Taverna, obra magistral do nosso brasileiro Álvares de Azevedo.

Permeado de elementos mórbidos do início ao fim, Solfieri é um conto sobre, aparentemente, necrofilia. Digo “aparentemente” porque, no decorrer da história, descobre-se que a jovem ainda não estava morta no momento do ato sexual. Gosto muito dessa narrativa por três razões: primeira, foi escrita pelo representante máximo do Ultrarromantismo no Brasil; segunda, funde amor e morte num mesmo espaço; terceiro, o personagem funciona como um alter ego do próprio escritor.
Solfieri ganha um rosto: edição em quadrinhos
da obra Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo.

Álvares de Azevedo é até hoje reverenciado pelo movimento gótico – por sua notória projeção na segunda geração romântica brasileira. Admirador confesso de Byron (Bertram é uma alusão explícita ao personagem do lorde inglês), o escritor incorporou todos os traços do mal do século. Em Solfieri, tem-se a reunião de todos esses elementos. 

A busca do prazer fica evidente já no início do conto. A idealização da mulher com feições angelicais e demoníacas fica explícita ao mencionar a condessa Bárbara e a “defunta”, a quem ele chama de “anjo do cemitério”. A imaginação doentia, algo característico do Ultrarromantismo, é representada pela figura espectral que surge na solitária janela e pela incerteza do jovem em não saber se adormeceu ou não.

Um ano após esse acontecimento, Solfieri retorna a Roma – o principal cenário da história – e, depois de uma orgia, encontra-se com a moça que ele acredita estar morta. É nesse momento que amor e morte se unem.

Apesar do histórico sexual do personagem, acredito que, ao ver aquela jovem, houve amor, e não apenas desejo – tanto que ele a leva para casa e dorme sobre seu túmulo quando ela morre (algo que não fez por outra mulher). Entretanto, essa junção amorosa se dá num momento fúnebre – Solfieri, vivo, une-se à moça, que ele acredita estar morta. Na verdade, ela tem catalepsia e morre depois. A jovem que é tratada como morta antes de morrer é um prenúncio do falecimento precoce – algo recorrente entre os literatos do Ultrarromantismo.
Reverenciado pelos góticos  de hoje, Álvares
de Azevedo serviu de inspiração para um episódio
 do seriado juvenil Tudo o que é sólido pode derreter.

Esses episódios nos remetem à vida do próprio autor do conto, Álvares de Azevedo. Especula-se que o escritor tenha participado da Sociedade Epicureia – cujo objetivo era a busca incessante e demoníaca do prazer. Conta-se, inclusive, que, numa dessas reuniões devassas, Álvares também teria se relacionado sexualmente com uma mulher desacordada – o que faz com que Solfieri se constitua, em ampla escala, um alter ego do próprio autor.

Mais que isso: Solfieri é a melhor representação do ideal ultrarromântico. Ele personifica o amor, a devassidão, a morte iminente, as orgias, a visão dicotômica que se tem da mulher... Solfieri é a mais atraente das figuras que se levantam na taverna – tanto que é o primeiro a contar sua história. Quando ele começa a falar, os outros fazem silêncio e ficam na expectativa. Sua trajetória realmente fascina qualquer leitor desavisado. Então, que tal conhecê-la? Mas antes disso, um brinde!









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