"Equus", um filme sobre o poder arquetípico do cavalo


Um famoso psiquiatra precisa resolver o seguinte caso: um jovem funcionário feriu os olhos de seis cavalos no haras onde trabalhava. O psiquiatra é o Dr. Martin Dysaer, o jovem é Alan Strang, e o filme é Equus, dirigido por Sidney Lumet e com enredo baseado numa peça teatral homônima escrita por Peter Shaffer.  A cada conversa entre médico e paciente (entrecortada por vários flashbacks), vamos mergulhando na psique dessas figuras – e, sobretudo, no poder arquetípico do cavalo.

Obsessão, insanidade e mistérios da
psique humana marcam o filme Equus.
Alan cresce num ambiente imerso nas narrativas da mãe. As histórias bíblicas contadas por sua genitora sempre exaltaram a imponência dos equídeos – fato que leva o rapaz a desenvolver uma relação voluptuosa, simbiótica e de dependência com esses animais. Apesar de a personagem colocar algumas visões pessoais e exageros nos textos das Escrituras, são inegáveis a presença e a simbologia dicotômica que o cavalo assume do Gênesis ao Apocalipse.

Já no primeiro livro do Pentateuco, vemos comparações entre o comportamento de corcéis e humanos – no filme, Alan exemplifica esse fenômeno ao desejar ser um só com os animais dos estábulos. Nos livros escritos pelos profetas, os cavalos aparecem como instrumentos da vitória e do poder. Os livros sapienciais se utilizam das características desses animais para discutir sobre a condição dos homens e suas ações. Nos chamados livros históricos, cavalos aparecem como veículos da comunicação de Deus (em alguns momentos, até elevam pessoas a Ele, como foi o caso de Elias). E, no Novo Testamento, o próprio Deus encarnado, Jesus, personifica a figura de um altivo cavaleiro. Contudo, sobre cavalos também se assentam maldições – peste, guerra, fome e morte –, conforme anuncia o último livro da Bíblia.
No Tarô Mitológico, o Hierofante, aquele que transita
 entre dois mundos - terreno e espiritual -, é representado
 pelo centauro Quíron, uma figura ambígua: está ferido
 eternamente, mas pode curar os outros.

Todas essas referências contrastantes e ambíguas aparecem diluídas nos conflitos de Alan e de Martin. E vão além. A simbologia do cavalo é antiga e profundamente recorrente em todos os povos. Tal fato faz desse animal um poderoso arquétipo. Está ligado ao sol e aos deuses (não é à toa que Alan o vê como uma divindade, o deus Equus). Entretanto, ao mesmo tempo em que venera essa figura, o rapaz o teme. O olhar dos cavalos personifica o poder panóptico de várias relações, inclusive entre os homens e o divino (é isso que tanto incomoda o jovem, pois aqueles olhos perscrutam até o seu momento de intimidade), o que nos leva ao encontro de Michel Foucault e sua obra Vigiar e Punir. Também convém citar ecos de 1984, distopia de George Orwell, com várias adaptações para o cinema, nesse momento do filme.

Nas cenas em que irrompe cavalgando nu, Alan parece realmente amalgamar-se ao cavalo, formando um só ser – imagem que nos remete ao híbrido centauro da mitologia grega. Misto de homem e cavalo, essa criatura mítica e fabulosa sintetiza bem as naturezas do jovem, do psiquiatra e de todos nós – instintiva, ambígua e oscilante. Por isso, Equus é um filme para quem deseja travar contato com seus próprios vícios, medos e contradições. É um convite a um encontro – galopante – com a nossa face selvagem e insana.

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