"Malhação" e suas conexões com a literatura
A chuva torrencial desaba sobre uma rua escura do Rio de Janeiro. Alexia está à procura da casa com o número 1046. Num determinado momento, Douglas,
seu ex-namorado – já falecido – aparece. Assustada, ela se esconde num
beco e tenta realizar uma ligação, mas o celular está fora de área. Há
exatamente sete anos, foi essa cena que o público de Malhação acompanhou no início da temporada de 2011. A
sequência fundiu muito bem os dois temas propostos para os episódios - a conexão (representada pelo celular) e o
sobrenatural (a presença de um rapaz morto).
O
roteiro da série, escrito pela publicitária Ingrid Zavarezzi, ao longo da
primeira fase (é sobre esse período que vou discutir), fez numerosas referências
à chamada literatura de consumo e às redes sociais – os personagens até
mantinham contas reais no Twitter.
O sonho em que Alexia (Bia Arantes) procura, sob a chuva, por uma casa com o número 1046 é recorrente e assustador. |
Um
blog, por exemplo, serviu como ferramenta para aproximar os protagonistas – Alexia
(Bia Arantes) e Gabriel (Caio Paduan). O jovem escreve o Além da Intuição, que
se propõe a desvendar casos supostamente sobrenaturais. Quando chega ao Rio,
para estudar História, Gabriel vai coincidentemente para o quarto que já foi de
Alexia – moça com quem ele sonha há muito tempo, mesmo sem se conhecerem. Ambos
se deparam com vários mistérios envolvendo o número 1046.
Após
uma crise de depressão, a estudante de Belas Artes deixou a casa que dividia
com as amigas Cristal (Thaís Melchior) e Babi (Marcella Rica) e foi viver na
fictícia favela dos Anjos, onde dá aulas de desenho e fotografia para alunos da
ONG Sentido Obrigatório.
Com
essa proposta inovadora, Malhação
Conectados abdicou dos clássicos conflitos adolescentes e primou pelos
diálogos com a literatura produzida nestas últimas décadas. Gabriel, nítida
alusão ao anjo da tradição bíblica, é um personagem inspirado em sagas
literárias como Crepúsculo, de
Stephenie Meyer, que fazia estrondoso sucesso na época em que a temporada 2011
estreou. A autora da série, inclusive, assumiu ter bebido nessas histórias
contemporâneas.
Gabriel,
conforme estava previsto na sinopse original, tinha um anjo dentro de si e
estava fadado a viver como humano – mote que nos reporta imediatamente a livros
como Fallen, de Lauren Kate, cujo
protagonista é um ser angelical preso numa forma humana, exatamente igual a
Patch, personagem de Sussurro, de
Becca Fitzpatrick.
Ao som de Todos, de Marcelo D2, a abertura exibia o misterioso número 1046 e apresentava as ligações entre os personagens. Fonte da imagem: Toda Teen. |
As
aparições fantasmagóricas de Douglas guardam similaridades com Crepúsculo (sua aparência é pálida, e
ele é misterioso). E sua morte ocorre em circunstâncias obscuras – um acidente
de moto. Caspian, da Trilogia das Sombras,
de Jessica Verday, também morre assim – e continua aparecendo para Abbey, por quem ele é apaixonado. Na
história, Kristen, como Alexia, deixa a amiga e desaparece sem se despedir. Em House
of Night, volumosa aventura literária escrita por P. C. Cast, vemos Zoey
abandonar sua casa para começar sua transformação na escuridão do submundo –
algo também almejado por Alexia ao ir para a favela.
No
quarto de Alexia havia também alusões a obras filosóficas. Em cima da bagunçada
escrivaninha, podia se ver livros de William Irvin, como Mettalica e a Filosofia, e Pink
Floyd e a Filosofia, de George A. Reisch.
Apesar
de toda essa pujança de analogias literárias, o público, acostumado aos
desenlaces amorosos da juventude, presentes nas temporadas anteriores,
afastou-se da série. Resultado: Zavarezzi e sua equipe tiveram de transformar a
trama inovadora e sobrenatural num drama clássico, com personagens maniqueístas
e ações previsíveis – o que foi uma lástima. Eu gostava de Malhação naquele formato. Gostava do sobrenatural diluído na
série. Gostava de seus diálogos literários. Hoje, sete anos depois, ainda me
lembro da história. E não há melhor maneira de rememorá-la que utilizando um
blog, algo tão presente na narrativa. Continuemos a recordar a magia dos bons
enredos e a estabelecer relações entre livros e TV. Afinal, tá tudo conectado!
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